sábado, 2 de março de 2024

Portal de Capricórnio




 Portal de Capricórnio, Ursulla Mackenzie. Capa: Denise Didelet. 219 páginas. São Paulo: Uiclap, 2019. Lançamento original em 2012.

 

Este livro me chegou em mãos através da própria autora, uma conhecida de anos do fandom brasileiro de FC&F. O leitor mais desavisado pode estar a estranhar o nome, mas se trata, na verdade, do nome artístico utilizado nos últimos anos por Márcia Olivieri. Inclusive, a edição original desta obra saiu com seu próprio nome.

É sua obra de maior fôlego até o momento, um romance muito movimentado sobre a descoberta de uma jovem, Dru River, de um livro antigo que traz consigo, além de segredos sobre as origens da humanidade, o acesso a um passado longínquo. Mas antes disso, ela, fascinada com o livro achado numa casa aparentemente abandonada no litoral paulista, justamente no meridiano do Trópico de Capricórnio, reúne, através de um amigo, vários pesquisadores para estudarem a obra. É então que Dru River, ao levá-los até o local onde o livro foi encontrado, é transportada subitamente junto com eles para um outro local, muito distante e totalmente diferente de tudo o que já conheciam e viveram. Confusos e transtornados, eles têm de entender onde estão, como foram parar lá, que relação há com o livro e, mais importante, como voltar para suas realidades.

Estas e outras perguntas irão movimentar os objetivos e ansiedades dos personagens que, aos poucos, e devido aos perigos repentinos que enfrentam, lutarão principalmente por sua sobrevivência num local que, pelo que vão percebendo, não faz parte do mundo que eles conhecem. Ambientes radicalmente diferentes se sucedem: ora um deserto branco e traiçoeiro, ora uma floresta densa e cheia de surpresas, ora planícies abertas, mas não menos perigosas. A temperatura também muda de forma abrupta, mas o mais terrível são as criaturas com que se deparam: seres rastejantes, ciclopes, monstros marinhos, tal como um kraken, seres centauróides, duendes e pássaros gigantescos semelhantes a seu ancestral pterosauro etc.

Mas que lugar é este e como foram para lá? Dru River e seus amigos transpassaram um portal do tempo, indo parar há 22 mil anos no passado da Terra. Mas podemos dizer que este passado do nosso planeta está muito mais próximo de um mundo de conto de fadas do que algo próximo do que seria verossímil por tudo que se conhece em termos científicos. Isso porque o romance, embora use o recurso da viagem no tempo, o faz apenas como meio de exploração de um lugar fantástico e mágico, mais próximo da mitologia do que da arqueologia.

Neste mundo, talvez de um universo paralelo, embora isso não seja explicitado, poderes mágicos e aparentemente sem explicação são possíveis, além do fato da própria presença de seres só conhecidos das lendas e fábulas – nesse sentido, senti a falta de um dragão. Daria um toque a mais de excentricidade ao conjunto de seres reunidos neste passado muito estranho.

Além de tentar sobreviverem, o grupo descobre porque, afinal, havia parado por lá. Um certo sujeito chamado Hans, representante de um Governo da Coalizão Mundial, lidera um plano secreto de colonizar este passado remoto. Mas resolveu usar dos serviços de Dru River e seu pessoal, por assim dizer, para que estes pudessem descobrir os segredos da principal civilização do tempo remoto, os Kathumaran que, por meio da magia e saberes ocultos, conseguem se manter protegidas e pode representar uma ameaça para os objetivos imperialistas.

Após conhecer Bram, o explorador dos Kathumaran e sua civilização, o grupo tenta voltar à nossa época, mas é surpreendido por Hans e seus soldados, que condicionam o retorno e sobrevivência, à revelação dos segredos da civilização. Eles voltam, mas resolvem adentrar o portal novamente para encontrar parte do grupo que havia se separado, além de tentar impedir os objetivos sinistros de Ham. Esta é uma espécie de ponto de virada da obra, pois ao retornar muitas das novidades são apenas repetidas, o que, de certa forma, diminuiu o impacto da obra até o seu final.

Mesmo assim, o leitor percebe que a história é cheia de reviravoltas. Se beneficia da tradição da fantasia do conto de fadas, com seus lugares fantásticos, personagens poderosos, magias e monstros, e em diálogo com os mundos imaginários criados por Burroughs e Tolkien. O perfil é voltado ao público infanto-juvenil, mas pode agradar a pessoas de qualquer idade, pois o forte é o entretenimento. A autora é competente nesse quesito que acaba, inclusive, reduzindo o impacto de possíveis senões presentes no enredo e seus desdobramentos, que poderiam se mais trabalhados e trazidos de forma mais importante à trama. Como, por exemplo, os detalhes desta coalizão mundial, como se formou, e descobriu o portal, e, talvez também, menos maniqueísta em seus objetivos. Ou então, a exposição do próprio passado, que fica apenas mostrado por meio das impressões dos viajantes, e não em si mesmo. Do jeito que está, parece mais, de fato, pertencente a um universo paralelo ou alternativo, mas poderia ter sido um pouco mais elaborado.

Há também alguns excessos de estilo, como o uso em demasia de pontos de exclamação na fala dos personagens. Um trabalho de edição poderia melhorar este aspecto, tornando a prosa com menos ruídos de interjeições. Como a primeira edição foi publicada em 2012, e esta teve relançamento em 2019, é possível que a autora tenha feito alguma revisão da obra, embora as duas edições, salvo engano, tenham o mesmo número de páginas. Mais importante, ela informa que escreveu uma segunda parte, onde responde às pontas soltas deixadas, e finaliza a aventura.

A paulistana Márcia Olivieri, já uma veterana da Terceira Onda da FCB, tem publicado contos em antologias de prestígio como, por exemplo, Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005) e Fractais Tropicais (2018), além de também já ter aparecido no exterior, em países como Alemanha, Argentina, Espanha e Estados Unidos. Inclusive, tem em vista um novo romance, que deve ser publicado em breve. Tudo isso só comprova que estamos diante de uma autora de carreira contínua e séria, que tem procurado se aprimorar e dar novos rumos à difícil e incerta carreira de escritora. Ainda mais de FC e fantasia. Talvez por isso tenha adotado um pseudônimo estrangeiro? É possível, pois vários outros brasileiros já tentaram esta estratégia para auferir mais êxito.

Seja como for, Portal de Capricórnio é um romance de fantasia, mas com ênfase weird interessante, que poderia, inclusive, ser adotado como livro didático em escolas, pois além de um bom entretenimento, inclui também um leque de informações corretas, em termos de dados históricos e/ou mitológicos, que poderiam ser úteis em atividades para crianças e adolescentes.

Marcello Simão Branco

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

O homem fragmentado, Tibor Moricz

O homem fragmentado
, Tibor Moricz. 214 páginas. São Paulo: Terracota, 2013.

Um dos temas que tem sido mais utilizados pela mídia recente nas séries e filmes de fc&f é o dos mundos ou realidades paralelas. Basicamente, não há muita diferença: são realidades geralmente similares, mas com pequenas alterações que foram consequência de alguma sutil decisão passada. Mas pode haver também grandes alterações, que tornam uma realidade absolutamente irreconhecível diante da original. Essas ideias foram exploradas primeiro pelos escritores de ficção científica, como por exemplo no conhecido O homem no castelo alto, de Philip K. Dick, recentemente adaptado para uma série de tv pelo canal de streaming Amazon Prime, em que duas realidades paralelas distintas acabam por interagir de alguma forma. Vimos isso também na série de tv Fringe, e no romance pós-modeno A cidade e a cidade, de China Miéville.
Tais especulações renderam até um gênero a parte, o da história alternativa, que consite em dramas históricos nos quais alguma alteração no passado mudou os rumos da história, como por exemplo em A máquina diferencial, de Bruce Sterling e Willian Gibson, obra fundadora do movimento steampunk. Também podemos recordar do subgênero da ficção alternativa, que propõe obras alternativas de uma outra, como O outro diário de Phileas Fogg, de Philip José Farmer, e Frankenstein unbound, de Brian Aldiss. Ou ainda, na mistura de ficção alternativa e história alternativa, como em Anno Dracula, de Kim Newman. 
Enfim, há inúmeras variações sobre o tema. Seria surpreendente que os autores brasileiros apaixonados por ficção científica nunca tivessem enveredado por esses caminhos. A maior parte deles preferiu, contudo, seguir os caminhos da história alternativa, da ficção alternativa e do steampunk. São raros os exemplos de uma história sobre realidades paralelas. E é justamente este o caso do romance O homem fragmentado, do escritor paulistano Tibor Moricz.
Conta a história de um escritor que, sofrendo de culpa pela morte acidental de seu único filho, num momento de depressão intensa decide dar cabo da própria vida com um tiro de revólver na cabeça. Ao acionar o gatilho, porém, nada acontece: a arma parece ter falhado. Mas ao abrir os olhos adepois da grande tolice que havia intentado, dá de cara com a expressão assustada de seu filho não mais morto. 
É claro que a arma funcionou e, na sua realidade original, ele estourou os miolos. Mas sua consciência escapou da morte e passou a saltar entre as múltiplas realidades. A partir daí, a realidade desse homem infeliz vai se tornar um turbilhão de jornadas alucinantes por diversas realidades paralelas nas quais as coisas são cada vez mais bizarras. A certa altura, quando as coisas já pareciam totalmente fora de controle, ele encontra uma outra viajante entre as realidades, que vai ajudá-lo a entender e aceitar o novo modelo da sua vida, no qual a morte é apenas um episódio como outro qualquer.
Moricz é um dos nomes mais destacados da fase inicial da terceira onda da ficção científica brasileira, ainda na primeira década do século XXI. Seu romance de estreia foi Síndrome de Cérbero (2007), seguido de Fome (2009) e O peregrino (2011). Mais recentemente, o autor estabeleceu sua base editorial na internet, publicando exclusivamente em ebooks, inclusive reeditando os seus primeiros trabalhos no formato digital, mas O homem fragmentado segue existindo apenas no formato impresso. O autor sempre se mostrou ousado nas temáticas de seus textos e, apesar de ter iniciado já com boa técnica, ganhou maturidade ao longo do tempo. O homem fragmentado é certamente seu livro mais maduro e intimista, aquele com o qual ficou mais a vontade como autor. A história é intrigante e tem mistério suficiente para motivar o leitor a continuar lendo, mesmo nas situações mais absurdas nas quais lança o protagonista. 
Infelizmente, Moricz parece ter reduzido o ritmo: seu romance  mais recente, a ficção científica planetária Dunya, foi publicada em 2017, há já quatro anos. Talvez esse lapso tenha a ver com a crise editorial que desmotiva a publicação de livros no país, ou porque o Brasil pareça cada vez mais com os cenários absurdistas que o protagonista de O homem fragmentado tem que lidar. O que é uma pena, pois a ficção de Tibor Moricz é cada vez mais necessária no Brasil. 
Cesar Silva

domingo, 11 de fevereiro de 2024

CURVA DE ARGUMENTO

 

Miguel Carqueija

 

            Em pleno Porto Espacial de Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:

            — E afinal, Peroba, você não vai comprar nada?

            — Com que dinheiro, Capitão? — respondeu o imediato, com cara de réu.

            — Ora essa, com o seu!

            — Capitão Barbosa, o senhor ganha dez vezes mais do que eu, e além disso...

            — Que dez vezes o que! São só oito! Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário de mendigo!

            Qualquer resposta do Peroba ficou entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:

            — Já gastou todo o seu salário?

            — Bem, capitão, sabe aquele joguinho...

            — É por isso que eu não jogo! Que isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!

            Entraram os dois numa mangazeria. Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.

            O velho Isolino, dono do negócio, quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou com outra mão. Voltou-se e deparou...

            — Arquibaldo!

            — Barbosa!

            — Que faz aqui? Largue o meu mangá!

            — Que quer dizer? Largue você! Eu peguei primeiro!

            — Sem essa! Eu peguei primeiro!

            — É meu!

            — Não, seu pilantra, é meu!

            — Pilantra é você! Lembro muito bem da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...

            — Você é que fez a barbeiragem! O meu papagaio de estimação ficou gago de susto...

            — Senhores, por favor — interveio o Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!

            Isolino pegou a revista e colocou-a na caixa, aos cuidados da Arlete.

            — Um deles vai comprar. Guarde enquanto isso!

            Zé Peroba se aproximou da caixa, interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...

            — Parado aí! Nem pense em se apossar do mangá!

            Peroba se virou: era o Bicudo, primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.

            — Você também por aqui?

            — E daí? Você também, não é?

            — Por favor, senhores! — exclamou implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número, mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...

            — Pois eu não vou esperar! Eu quero esse! — gritou o Capitão Barbosa.

            — Egoísta! Eu é que não vou esperar! Eu quero esse!

            Arquibaldo e Barbosa agarraram-se mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.

            — Parem! Ordeno que parem! Acabem com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!

            Pararam todos instantaneamente, espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto, descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.

            —Quem é você? — perguntou o Capitão Barbosa, esforçando-se por se levantar.

            — Ora, quem sou eu! Então não me reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!

            — Nunca ouvi falar. Por favor, não gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?

            — Está escrito no seu crachá!

            — Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da jaqueta.

            — O que quer o senhor? — quis saber o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.

            Pondo as mãos atrás das costas o Dr. Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se dos dois beligerantes:

            — Isso não é problema, posso dar uma contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?

            — Como você sabe? Não carrego nenhum crachá.

            — Está bordado na sua jaqueta.

            Arquibaldo enrubesceu.

            — Avisei a mamãe que não precisava fazer isso.

            — O que eu percebi é que vocês dois são um caso preocupante de regressão milenar.

            — O que quer dizer com isso? — indagou Barbosa.

            — Que vocês, sendo comandantes de astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso que eu quis dizer.

            — Mais respeito! — exigiu o Capitão Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?

            — É claro! — e Mexilhão fungou. — Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no Astroporto de São Paulo...

            — Bem, bem, isto é, quero dizer...

            — E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!

            — Eu bem sei — disse Mexilhão, sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a partida e ainda incendiou o gramado.

            — Eu... ãh... como é que você sabe?

            — Sou um homem bem informado! Agora se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto que os dois sairão daqui como amigos!

            — Está bem, falastrão. Quero ver que espécie de solução você vai dar.

            — De acordo — acrescentou Barbosa.

            — O que você acha? — consultou Peroba ao Bicudo.

            — Não sei. Isso está esquisito — e Bicudo deu de ombros.

            Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:

            — Meu senhor, se puder apaziguar os ânimos eu ficarei eternamente grato!

            — Não precisa tanto, então agora eu vou agir!

            Chegou para a Arlete:

            — Empreste-me a revista, por favor.

            Arlete, meio assustada, olhou para Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo psiquiatra.

            — Preciso de uma mesa vazia — rosnou Mexilhão para Isolino.

            — É pra já, senhor.

            Colocou alguns livros num espaço qualquer numa estante, e mostrou a mesa:

            — Serve essa, senhor?

            — É de madeira. Ótimo. Agora pode se afastar.

            Sem muita vontade de contrariá-lo o Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa. Então pôs-se a folheá-lo.

            — Não está pensando em ler o mangá, eu presumo — observou Barbosa.

            — Claro que não. Detesto mangás! Só estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na 120.

            Abriu o mangá nas páginas 120-121, deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá, partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.

            Novas pessoas que se haviam arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos apatetados astronautas.

            — Peguem! Metade para cada um!

            Como em transe eles pegaram e Mexilhão se aprumou.

            — Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho que ir, outro dever me chama!

            — Mas... mas... mas... peraí... — balbuciou Barbosa.

            — Não se preocupem! Não cobro nada pela consulta! Foi uma amostra grátis!

            Arquibaldo, ainda em estado de choque, murmurou:

            — Mas espere aí... que idéia foi essa...

            — Na verdade a idéia original não foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!

            Disse isso e foi embora.

            Alguns segundos depois eles começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:

            — Alguém pode me dizer quem vai me pagar o prejuízo?

            Disse isso e desmaiou, sendo amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do infeliz livreiro.

            — Capitão, vamos continuar a briga? — indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.

            — É claro que não, seu idiota! Vamos é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente serviço!

            — E o que vamos fazer com isso? — perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:

            — Arquibaldo, decididamente eu não quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!

            Entregou a metade do mangá para o outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.

            — Bicudo, guarde na sua mochila, eu pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!

            — É claro, amigo! Se é que vamos conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!

            — Não importa, amigo! Vamos tentar pelo menos!

            — Esperem aí! — gritou a aflita Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!

            — Acha mesmo — escandiu Arquibaldo — que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!

            — Acho melhor irmos atrás deles, você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!

            — Preferia não ir, mas você tem razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele seja!

            — Vocês dois sabem qual é o pior nisso tudo? — gemeu a Arlete.

            — Não, o que? — disseram eles em uníssono.

            — Muito simples. Tenho certeza que este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso ordenado!

            — Que já é uma miséria — completou a Júlia.

            — Vamos rachar a despesa — disse Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua parte?

            Eles rapidamente pagaram e Arlete agradeceu mas ainda perguntou:

            — Mas e a mesa?

            Os dois se entreolharam.

            — Ah, não! — disse o Bicudo. — Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!

            Bicudo e Peroba saíram correndo, tentando encontrar os capitães.

            — Numa coisa pelo menos o malucão estava certo — lembrou Zé Peroba.

            — Em que?

            — Ora! Que os dois iam sair daqui como amigos!

 

NOTA – Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o Capitão Barbosa.

Imagem Pixabay.

 

Rio de Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

O Enigma de Andrômeda

 



O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain), Michael Crichton. Tradução: Fábio Fernandes. 305 páginas. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Lançamento original em 1969.

 

Este romance é um clássico do sub-gênero tecnothriller, que procura trabalhar com enredo de ação e suspense em torno de um problema científico e/ou tecnológico na fronteira do conhecimento. O Enigma de Andrômeda se distingue, ainda, pela abordagem a partir de uma perspectiva médica/biológica. Há outros romances nesta linha, mas talvez nenhum com o impacto deste. E isso além do fato de que a maioria dos tecnothrillers trilhou o caminho do suspense político em meio ao contexto da Guerra Fria e novos armamentos e tecnologias.

Nos anos 1960, em plena disputa pela primazia espacial e militar, os EUA criam um projeto secreto para explorar a possibilidade, teórica, em princípio, de estudar e desenvolver alguma arma biológica a partir de supostos microorganismos situados no espaço próximo à Terra. Para isso lançam alguns satélites de exploração até que um deles choca-se com um meteoro e entra na atmosfera. Qual não é a surpresa e o choque quando se descobre que o Scoop-7 matou quase todos os habitantes de Piedmont, uma cidadezinha do estado do Arizona.

Com isso é reunida uma equipe de cientistas lideradas pelo prêmio Nobel de Medicina Jeremy Stone. Na verdade, ele é que havia proposto ao governo a criação deste projeto anos antes – chamado de Wildfire –, mas não com objetivos militares, e sim científicos. Ele e mais três especialistas (um microbiologista, um patologista e um cirurgião) são levados a uma instalação subterrânea ultrassecreta no interior do estado de Nevada, em uma corrida contra o tempo para descobrir o que ocorreu em Piedmont, a partir dos destroços do satélite e dos dois únicos sobreviventes: um homem idoso e um bebê. Foi mesmo causado por um microorganismo? De origem terrestre ou alienígena? Quais suas propriedades, como age no organismo humano, qual o grau de contaminação e letalidade?

Como o leitor já deve ter notado, Crichton faz uma crítica ao governo norte-americano por perverter uma iniciativa que teria interesses científicos. Esta crítica pode ser estendida a muitos outros países, e deixa implícita a hipótese de que um processo de doença epidemiológica de consequências catastróficas pode ter sido criada num laboratório. Estas situações são muito prováveis, principalmente na época em que houve a rivalidade entre norte-americanos e soviéticos. E a exploração dessa possibilidade se tornou comum em muitas teorias da conspiração, principalmente quando uma nova doença contagiosa é descoberta. Mais recentemente, as suspeitas, fundadas ou não, sobre o surgimento da Covid-19 também estão nesse contexto.

O romance se desenvolve como se fosse os cinco dias da maior crise científica da história dos EUA. Cada capítulo se passa num deles e progressivamente as pesquisas avançam, bem como seus desdobramentos. Crichton escreve de forma intensa e com muito realismo, tratando o assunto com o conhecimento científico da época. Assim, as páginas tem um aspecto semidocumental, com a apresentação de relatórios médicos, descrições de experimentos biológicos, gráficos, tabelas, infográficos e até uma bibliografia acadêmica ao fim da obra, para quem quiser estudar o assunto de forma mais profunda. Mas nada disso torna o livro chato. Ao contrário: reforça ainda mais o teor realista da obra, tornando-a mais impressionante para o leitor.

Dessa forma, todas as teorias de vida extraterrestre são apresentadas – pelo menos até a época em que o livro foi escrito –, e uma delas, justamente, é esta da chamada panspermia. De microorganismos de origem extraterrestre que adentram em nosso planeta. E no caso da “Variante Andrômeda” se mostrando uma bactéria de aspecto mortal. Com uma estrutura interna diferente das estruturas celulares da Terra, uma espécie de hexágono cristalino – mas sem DNA, RNA, proteínas ou aminoácidos –, é mortal aos seres vivos do nosso planeta ao provocar uma rápida coagulação no interior do organismo, solidificando o sangue, por assim dizer. Contudo, como irão descobrir os cientistas, pode haver alguma esperança, pois ela sofre contínuas mutações ao contato com o oxigênio presente na Terra.

Há um ponto especialmente interessante de O Enigma de Andrômeda que poderia ter sido mais explorado, mas talvez não o tenha porque poderia encaminhar a história para um sentido mais especulativo. É a Teoria da Bactéria Mensageira, ou seja, da possibilidade do envio de um microorganismo como meio de comunicação de uma espécie inteligente a outra. Isso mesmo: uma civilização extra-solar enviaria ao espaço profundo uma forma de vida que poderia estabelecer alguma comunicação com outra espécie inteligente. No livro ela teria sido apresentada por um engenheiro de comunicações, num congresso de Astronáutica no começo dos anos 1960. Talvez não por acaso, pois o romance surgiu no contexto da efervescência da corrida espacial da época, e Crichton explorou, justamente, esta perspectiva biológica. Factível ou não, a ideia é fascinante.

Na época, Michael Crichton (1942-2008) havia se formado em Medicina pela Universidade de Harvard, mas já havia dado os primeiros passos na carreira de escritor. Contudo, antes deste livro havia publicado apenas com pseudônimos, e O Enigma de Andrômeda foi o primeiro assinado com seu próprio nome. O sucesso imediato fez sua carreira de escritor decolar. De fato, o livro foi rapidamente adaptado ao cinema, num filme ótimo que se tornou também um clássico, homônimo de 1971, dirigido por Robert Wise (1914-2005). Anos depois, em 2008, no ano da morte de Crichton, Ridley Scott produziu uma minissérie baseada na história.

De fato, e como o leitor pode ter percebido ao ler o resumo do enredo acima, a obra tem muitas qualidades, que se tornariam uma marca de Crichton: uma prosa direta, com personagens interessantes e ativos, colocados quase sempre em situações limite, com muita tensão e suspense, em torno de temas e eventos na fronteira do conhecimento, na maior parte das vezes relacionados à FC. Muito prolífico, ele se tornou também roteirista e diretor de filmes competentes. Exemplos: Westworld: Onde Ninguém tem Alma (Westworld; 1974), O Homem Terminal (The Terminal Man; 1974), a adaptação de outro thriller médico Coma (1978), baseado no romance do também médico Robin Cook, entre outros. Sempre com uma visão crítica e por vezes irônica sobre os rumos da relação do ser humano com a tecnologia e a pesquisa científica.

Em termos populares Crichton, muito presente a partir dos anos 1970 até a sua morte precoce aos 66 anos, é mais conhecido como autor do romance Parque dos Dinossauros (Jurassic Park; 1990), de fato mais uma de suas obras muito boas – e que recebeu aqui no Brasil o Prêmio Nova em 1992. Mas, em termos de contribuição original à FC, acredito que O Enigma de Andrômeda ainda seja o mais interessante e influente. A editora Aleph relançou a obra em 2018, e ela continua, portanto, acessível aos leitores brasileiros.

Marcello Simão Branco

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A torre acima do véu, Roberta Spindler

A torre acima do véu
, Roberta Spindler. 272 páginas. São Paulo: Giz, 2014.

Aconteceu muito rápido e ninguém nunca soube de onde veio o miasma que cobriu todo o planeta. Quem respirava a névoa morria em dolorosa agonia, pelos menos esse foi o destino daqueles que tiveram sorte. 
Os arranha-céus das cidades, com centenas de andares, proporcionaram a uns poucos a possibilidade de sobreviver nos níveis mais altos, acima da névoa venenosa. Ali, esses miseráveis fundaram uma nova sociedade dominada por leis draconianas, devido a escassez extrema recursos, especialmente de energia, comida e água. Abaixo da linha da névoa, a vida também mudou. Humanos e animais transformados em selvagens antropófagos chamados de sombras, eventualmente sobem as escadas para caçar os últimos seres humanos encurralados no topo dos edifícios. 
Nesse ambiente insalubre vivem Beca e Edu, filhos de Lion, cidadãos da comunidade de Nova Superfície, sobreviventes que habitam um conjunto de prédios cuja sede está localizada nos últimos andares da Torre, o mais alto edifício da antiga megalópole de Rio-Aires. Beca é uma mergulhadora, exploradora especializada que, fazendo uso de cabos e outros equipamentos de escalada, desce aos andares próximos à linha da névoa em busca de qualquer dispositivo remanescente da antiga tecnologia que possa ser reaproveitado. Enquanto Beca cumpre a parte braçal do processo, Edu, seu irmão mais novo, e Lion, seu pai, um mergulhador aposentado, ficam numa central de computadores monitoranto os movimentos de Beca e mantendo cosntante contato de rádio de forma a mantê-la viva durante a missão. A história inicia durante uma dessas incursões, na qual Beca procura por um tipo de bateria de energia infinita cuja localização lhe foi passada por Rato, um informante não muito confiável. A operação acaba comprometida por um conflito com outra equipe de mergulhadores, e Beca acredita que foi traída por Rato. 
Esse desentendimento inicial progride a um conflito mais sério quando Edu, ao participar de um mergulho, acaba despencando para dentro da névoa, onde desparece completamente. Tudo leva a crer que Edu morreu, mas Rato pensa que ele ainda vive em algum lugar na superfície. Desesperados para resgatar Edu, Beca e Lion convencem os governantes de Nova Superfície a organizar uma missão de resgate na região dominada pela névoa venenosa e pelos sanguinários mutantes. E a aventura vai revelar muito mais sobre o que está por trás da névoa, de onde ela veio e por quê, e o papel de cada um nesse drama mortal.
A torre acima do véu é um romance originalmente publicado em 2014, pela Giz Editorial, e é essa a edição tratada nesta resenha. A autora, Roberta Spindler, é paraense de Belém e publicou anteriormente o romance Contos de Meigan: A fúria dos cártagos, em parceria com a também paraense Oriana Comesanha, publicado em 2012 pela Editora Dracaena. Também teve publicado o romance Heróis de Novigrat (Suma, 2018). 
Spindler tem um texto maduro e bem modelado, sem experimentalismos formais, seguindo a risca todos os protocolos da ficção de gênero numa mescla de fantasia, terror e ficção científica acessível aos leitores mais jovens para quem sua ficção é dirigida. Os personagens são estruturados com motivações bem calçadas, o que dá verossimilhança ao drama ainda que seja todo crivado de situações hiperbólicas incríveis. É justamente o bom desenvolvimento dos personagens que fleva o leitor a avançar, preocupado com o destino deles. 
A produção da Giz é caprichosa, com ótima revisão de Sandra Garcia Cortez e a ilustração 
expressiva de Rafael Victor que já bastou para capturar a minha atenção, numa das mais instigantes capas da ficção fantástica brasileira recente. 
Enquanto aguardamos a já anunciada continuação para A torre acima do véu, o romance acaba de ganhar nova edição pela Editora HarperCollins Brasil. Vale a leitura deste e dos demais trabalhos de Roberta Spindler, que tem progredido rapidamente no espaço editorial brasileiro. 
Cesar Silva

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Mestre das Marés


Mestre das Marés, Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Vagner Vargas. 288 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2018.

 

Este romance é o terceiro livro de Causo em seu universo ficcional GalAxis, e o segundo da série As Lições do Matador. O primeiro foi Glória Sombria (2013), que mostra uma das primeiras missões do herói Jonas Peregrino, e o segundo traz as aventuras de Shiroma: Matadora Cyborgue (2015). Neste meio tempo outras histórias curtas de ambos os personagens foram escritas e publicadas. Mestre das Marés é, isto sim, o trabalho mais ambicioso deste universo até o momento, e um dos melhores já escritos pelo autor.

Nesta nova missão, o Capitão Jonas Peregrino e sua unidade dos Jaguares são enviados para resgatar uma estação internacional de pesquisa, em órbita do planeta Firedrake Gamma-M, depois que ela é atacada pelas naves-robôs dos tadais, a misteriosa espécie alienígena que combate a expansão humana pela Via-Láctea e ameaça também outras civilizações alienígenas.

Os cientistas se refugiam no planeta, mas ele é duramente atingido por jatos relativíscos que começam a ser disparados pelo buraco negro dos arredores, e que era pesquisado pelos cientistas. Gamma-M tem sua atmosfera eliminada e é só uma questão de tempo para que seja inteiramente destruído pela singularidade, chamada pelos cientistas terrestres de Firedrake, o dragão que cospe fogo. Contudo, talvez a metáfora mais apropriada seja a de Mestre das Marés, a tradução do nome Agu-Du’svarah, dado pela antiga civilização do Povo de Riv — vistos antes na noveleta “A Alma de Um Mundo”.[1]

Conforme os cientistas da estação Roger Penrose — homenagem antecipada ao físico inglês vencedor do Nobel em 2020 — e Peregrino irão constatar, o ataque ocorreu porque nos subterrâneos do planeta oculta-se uma instalação tadai secreta, com dispositivos de alta tecnologia e informações que podem ajudar na guerra travada pela Terra e seus aliados contra os inimigos. A missão, então, passa a ser muito mais complexa e perigosa do que inicialmente prevista, pois além de resgatar os cientistas, Peregrino deve levar o que puder do dispositivo.

Como já mostrado nas histórias anteriores, no século XXV embora a Terra tenha se expandido pela galáxia suas divisões políticas internas continuaram. Peregrino é um militar da Latinoamérica, a menos afluente das alianças continentais. As outras são a Aliança Transatlântico-Pacífico e os Euro-Russos. Em meio às rivalidades políticas, os humanos vivem nas chamadas Zonas de Expansão, com um grande interesse pela Esfera, a região mais rica e habitada por civilizações alienígenas, como o já citado Povo de Riv. De certa forma, é uma amostra de incrível poder econômico, militar e tecnológico dos humanos, conseguir se espalhar pela galáxia, se equiparando a outras civilizações que, ao que parece, conseguiram sua união política interna.

Mas este contexto político maior é abordado de forma indireta, por meio das estratégias e intrigas entre as alianças para obter poder e influência entre os humanos e, destes, com outros povos da galáxia. Em Mestre das Marés tal contexto se desdobra aos poucos, principalmente quando vai se tornando claro que não há um mesmo objetivo entre os cientistas e Peregrino, quanto a quem deve ser o destinatário das valiosas informações do dispositivo tadai.

Contudo, a grande força do romance é a missão em si. Um grupo de naves espaciais se aproxima de um planeta que está sendo devorado por um buraco negro e ainda sob a ameaça de extermínio pelos inimigos tadais. Como diz o subtítulo, a aventura é mesmo uma “jornada ao inferno de um mundo destruído por um buraco negro”. O enredo se concentra na descida a Gamma-M e o drama explícito de, mais do que resgatar os cientistas, obter as informações dos tadais a tempo de não ser destruído por Agu-Dus’varah.

Causo narra com detalhes extremos toda a sequência de acontecimentos dramáticos, em que o risco de morte é iminente a cada virada de página. Isso dá uma sensação de certa angústia ao leitor, de se estar diante de verdadeiras situações-limite, em que cada decisão pode ser a última. Neste livro, mais do que nas histórias anteriores, é mostrado um Peregrino mais sensível ao drama que o cerca. Não em relação à missão militar em si, mas ao contexto de estar diante da maior força conhecida da natureza, o buraco negro. A médica da equipe dos cientistas o diagnostica com a “Síndrome de Reinhardt”, com aumento intenso da ansiedade e numa situação próxima do pânico, diante da sensação de descontrole e morte iminente — a popular síndrome do pânico. Para um militar em comando isso poderia ser embaraçoso, mas Peregrino contorna a situação, ao se concentrar nos objetivos em si de resgatar os cientistas e o dispositivo tadai.

Mesmo que o aspecto dramático da trama seja evidente, por vezes, é preciso um esforço do leitor em acompanhar capítulos com descrições detalhadas dos aspectos científicos e militares envolvidos na missão. Causo mostra que pesquisou muito para obter um resultado convincente, principalmente sobre os conceitos de Física relativos à dinâmica difícil de um buraco negro. Se ficasse apenas neste aspecto o romance já chamaria a atenção como uma peça de ficção científica hard extrema, talvez só com paralelo com os escritos de Jorge Luiz Calife, em seu Universo da Tríade. Mas em meio a este contexto mais árido, há a dimensão humana do sofrimento, entremeado com seguidas citações de Peregrino de trechos dos poemas de Dante Alighieri (1265-1321), no mergulho poético de extrema força simbólica religiosa de sua obra A Divina Comédia (1304-1311), em especial na seção relativa ao “Inferno”. Embora seja de se pensar como Peregrino fosse um especialista numa obra como essa, por outro lado é parte da densidade de um personagem que vai além das aparências. Neste sentido, tais paralelos entre o que ele e seus comandados viveram nas entranhas de um planeta prestes a ser destruído e as imagens poéticas de Dante, conferem uma dimensão épica à aventura.

Outro diferencial é a presença de uma jornalista que foi destacada para escrever um perfil nada amigável de Peregrino. Por cerca de metade do livro, as seções são entremeadas com a missão militar em si e as considerações pessoais nada simpáticas de Camila Lopes ao personagem de sua reportagem. Chega a causar incômodo a desconfiança da jornalista, para quem já acompanhou a postura ética de Peregrino em outras histórias, mas, como irá ser revelado, tudo fazia parte de um esquema oculto para prejudicar o prestígio de um militar que obteve grandes vitórias contra os tadais em missões anteriores.

Mestre da Marés é um dos melhores romances hard da ficção científica brasileira. Não que haja muitos neste subgênero entre nós, mas, como já disse, o autor é eficaz em trabalhar de forma didática tantos conceitos, justificando-os como necessários para o tipo de história que está sendo narrada, e tornando palatável para o leitor. O romance ainda é complementado por uma seção de “anexos”, com várias informações e curiosidades sobre o Universo GalAxis. Trabalho caprichado.

Apesar de ser o maior texto já escrito sobre este universo, muitas questões são deliberadamente deixadas em aberto com a conclusão do romance. As informações do dispositivo tadai foram realmente perdidas? A que interesses de fato serviam os cientistas da Roger Penrose? Qual o possível papel das outras alianças terrestres rivais da Latinoamérica? Quais os segredos do misterioso Povo de Riv, possivelmente o maior aliado dos humanos, mas com seus próprios interesses na guerra? Além, é claro da persistência do mistério dos próprios tadais. É um empolgante universo ficcional em construção, que só instiga o leitor a continuar a acompanhar as próximas aventuras.

Marcello Simão Branco

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Agora em janeiro de 2024, o Universo GalAxis completa 15 anos. Para comemorar a data está disponível quatro papéis de parede ilustrados por Vagner Vargas. Podem ser baixados gratuitamente: http://universogalaxis.com.br/universo-galaxis-faz-15-anos-em-2023/

 


[1]     Publicado primeiro na antologia Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia não Muito Distante, organizada por Hugo Vera e Larissa Caruso. Editora Draco, 2012.