quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A cabeça do santo, Socorro Acioli

A cabeça do santo, Socorro Acioli. 168 páginas. Capa de Elisa von Randow. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2014.

Fato: a ficção regional não é um dos temas prediletos dos autores de ficção fantástica brasileira. Os motivos dessa antipatia são inúmeros: passam pelo desinteresse do brasileiro médio por sua própria cultura, pelo velho discurso por um texto de alcance 'internacional', sempre na ponta da língua, e até pelo batido argumento de que cada um faz aquilo que quer. E, sendo o autor brasileiro de ficção fantástica um apaixonado pela ficção anglo-americana, geralmente o que ele quer, com raras e honrosas exceções, é mesmo imitar aquilo que o impressionou. Então tome pastiches e mais pastiches – os conhecidos fanfics – que muitas vezes imitam até o improvável vocabulário das traduções que abundam no mercado.
Por isso, é preciso sempre comemorar e valorizar quando um autor brasileiro abraça suas tradições culturais e realiza um texto tão regionalmente saboroso como é o caso do romance A cabeça do santo, de Socorro Acioli, publicado em 2014 pela Editora Companhia das Letras.
Não é surpreendente que o romance seja assinado por uma autora desconhecida da comunidade de autores e leitores de ficção fantástica. Geralmente, os textos mais regionalistas do gênero chegam pelas mãos de autores que não se formaram lendo toneladas de livrinhos baratos de ficção mal traduzida.
Socorro Acioli é uma experiente autora pernambucana de livros infanto-juvenis, premiada com o Jabuti em 2013, jornalista e doutora em literatura pela Universidade Federal Fluminense, que teve a ventura de participar, em Cuba, da oficina Como Contar um Conto, orientada por ninguém menos que o Prêmio Nobel Gabriel García Márquez, recentemente falecido, e para quem a autora dedica o livro, pois o romance em questão foi trabalhado justamente nessa oficina e entusiasmou o mestre, como nos conta a autora nos seus agradecimentos.
A cabeça do santo conta a história do jovem Samuel que, por causa da promessa feita a mãe moribunda, sai à procura do pai que ele nunca conheceu, mas odeia com todas as forças. Depois de uma exaustiva jornada, quase morto, chega à Candeia, cidade decadente na qual vive sua avó paterna, mas é recebido friamente pela anciã que o despacha por uma picada no meio do mato, no fim da qual encontra uma enorme cabeça de cimento – a tal cabeça do santo – cujo corpo decapitado pode ser visto no alto de um morro próximo. Cansado, sedento, ferido e acossado por uma matilha de cães ferozes, Samuel se refugia no oco da cabeça e, para sua surpresa, começa a ouvir rezas e cantilenas de diversas mulheres que pedem pela intercessão do referido santo (no caso, Antônio, aquele) para conquistar o homem amado. Com a ajuda do menino Francisco, flagrado numa situação constrangedora, Samuel usa de suas habilidades como guia de romeiros, atividade que exercia em Juazeiro do Norte antes da morte de sua mãe, para conquistar fama e fortuna junto àquela comunidade quase extinta. O sucesso de seus "milagres" reacende a vida no povoado e incomoda os poderosos do lugar. A situação se complica quando, por intervenção do apresentador de um programa da rádio local, Samuel se torna uma espécie de messias entre a mulherada da região. E não só isso. Os segredos por trás da estranha cabeça decepada, das desgraças que assolam a vida se Samuel, a procura pelo pai desaparecido e pela moça de bela voz que canta todos os dias no oco cabeça, vão levá-lo a confrontar mistérios deste e de outros mundos.
Contudo, mais que a tragicômica história de Samuel, o que torna A cabeça do santo realmente especial é a qualidade narrativa, repleta de detalhes que reconstroem a região e a cultura nordestinas não apenas através de descrições vívidas de seus cenários, mas principalmente pela musicalidade e sintaxe do palavreado da região, o que dá à leitura um dinamismo ágil e sem esforço.
A edição é caprichada, com 168 páginas em papel pólen e uma capa belíssima na qual se vê apenas a foto envolvente de uma caatinga, de autoria de Márcio Vasconcelos. Título, lombada, orelhas e outros detalhes aparecem somente numa sobrecapa, impressa um preto sobre cartão amarelo, emprestando ao volume a estética das revistas de cordel. Também acompanha um marcador de páginas que remete às fitas coloridas que os romeiros geralmente amarram aos pulsos.
Por tudo isso, A cabeça do santo deve estar entre os melhores livros de ficção fantástica publicados no País em 2014, referência para todos aqueles que buscam encontrar o Brasil em sua própria ficção.
— Cesar Silva

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