quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A pulp fiction de Guimarães Rosa, Braulio Tavares

A pulp fiction de Guimarães Rosa, Braulio Tavares. 80 páginas. Série Veredas, nº 5. Editora Marca de Fantasia, João Pessoa, 2008.

Nem todos os fãs de ficção científica e fantasia gostam quando algum estudioso descobre pontes entre o gênero fantástico e o cânone literário, pois isso parece retirar deles parte da autoridade. Afinal, se um figurão “de fora” de repente é inserido no fantástico, todos os argumentos ficam comprometidos até que o mesmo seja lido e estudado. No imaginário do fandom, os gêneros são quase uma propriedade particular, um espaço reservado no qual se pode, por exemplo, impedir que um autor do mainstream trafegue, uma pequena vingança à falácia que o mercado maldosamente bloqueia o acesso dos autores de gênero ao público.
Por outro lado, há fãs que gostam de ver grandes nomes da literatura envolvidos com a ficção de gênero exclusivamente para se sentirem um pouco melhor dentro de um nicho desprestigiado cultural e comercialmente.
Nem uma nem outra foram intenções de Braulio Tavares quando se debruçou sobre a obra de Guimarães Rosa em busca de vínculos com a ficção fantástica. Historicamente, Tavares tem dedicado boa parte de seu trabalho de pesquisa a identificar a fisionomia da ficção fantástica brasileira, com objetivos historiográficos, técnicos e estéticos, ou um pouco mais egoístas, qual sejam, descobrir caminhos que ele mesmo, como autor fantástico, pode trilhar. Ao compartilhar com os leitores o resultado de suas análises, ajuda outros autores e o próprio fã a entenderem a ficção fantástica e o que a torna inequivocamente brasileira.
O escritor pernambucano Braulio Tavares já presenteou os leitores com diversos livros de ficção e não-ficção, como a coletânea A espinha dorsal da memória/ Mundo Fantasmo (Rocco, 1989), o romance A máquina voadora (Rocco, 1994) e os ensaios O que é ficção científica (Brasiliense, 1986) e Um rasgão no real (Marca de Fantasia, 2005), entre outros.
Em A pulp fiction de Guimarães Rosa, seu segundo livro pela prestigiosa editora independente Marca de Fantasia, Tavares reuniu ensaios sobre trabalhos curtos de Rosa em três fases distintas, identificando influências, ferramentas narrativas e a forma roseana de pensar a ficção como peça de arte literária inserida na tradição cultural brasileira.
O primeiro ensaio, que traz o nome do volume, foi originalmente publicado no “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde, em 1998. Nele, Tavares trata de alguns contos da fase inicial de Guimarães Rosa, quando ele era ainda jovem. “O mistério de Highmore Hall” foi publicado em 1929 na revista O Cruzeiro, quando Rosa tinha apenas 21 anos. É um conto de contornos góticos, com um mistério de morte e horror num velho castelo escocês. Fica claro que Rosa conhecia – e gostava – dos textos de Edgar Alan Poe e Alexandre Dumas, e seguiu-lhes cuidadosamente os passos. Revela assim que, em seu início, Rosa agia exatamente da mesma forma que os atuais autores-fãs: escrevia pastiches de seus autores favoritos; bem escritos mas, ainda assim, pastiches.
O segundo conto tratado é “Makiné”, publicado em O Jornal, em 1930. Trata-se de uma dark-fantasy que se passa durante a visita dos fenícios às terras dos tupinambás. Ainda que a história lembre as prosas de Clark Ashton Smith e Robert Howard, já mostra que Rosa não estava satisfeito em apenas repetir-lhes, e tratou de inserir um Brasil pré-cabralino, geograficamente reconhecível: Maquiné é uma famosa gruta da região em que Guimarães Rosa nasceu.  Desta forma, Rosa repete também o processo de autoconsciência dos autores do fandom brasileiro que, a certa altura, perceberam que era necessário dar feição nacional a ficção que faziam. Ainda que o texto continue a parecer escrito por um estrangeiro, foi um passo enorme em apenas alguns meses de atividade. Os autores-fãs tiveram muito mais dificuldade em dar esse passo.
“Tempo e fatalidade” saiu em O Cruzeiro, em 1930. Conta a história de um enxadrista que vai participar de um torneio no sul da Alemanha e acaba envolvido por um mistério de deuses antigos e estados alterados de consciência.  Ainda que não tenha o regionalismo imposto, como visto no exemplo anterior, este conto apontou os caminhos de Rosa no trato com o simbolismo mitológico e a luta do bem contra o mal, que igualmente caracterizam a sua obra. Também já ensaia o zelo na escolha dos nomes dos personagens, que sempre trazem sentidos ocultos. Ou seja, está neste conto o gérmen do que viria a ser a proposta literária roseana e, neste aspecto, os paralelos com a ficção fantástica brasileira só vão ser encontrados nos trabalhos dos autores mais amadurecidos da fc&f brasileira, como por exemplo André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone e Dinah Silveira de Queirós que, curiosamente, nunca foram autores-fãs.
O segundo ensaio, inédito, avalia minuciosamente um trabalho um pouco mais longo de Guimarães Rosa, a novela “O recado do morro”, publicada em 1956 na coletânea Corpo de baile. Acompanhar a dissecação que Tavares realiza é um verdadeiro cabo-de-guerra, pois esta novela é fruto de um Guimarães Rosa maduro e pronto.
Quem já leu a ficção roseana sabe que uma das muitas características do autor de Grande sertão veredas é uma prosa repleta de termos desconhecidos e desusados, que remetem à linguagem sertaneja. Ainda que possa soar incômoda a princípio, a musicalidade do texto leva o leitor a vestir o espírito sertanejo, evocando raízes profundas que nem mesmo acreditava ter, tanto que depois de algum tempo, a prosa clareia e ganha uma vitalidade especial, fruto de um cuidado nada casual.
Tavares nos conduz nessa rede intrincada e explica cada detalhe dessa história que repete a saga do herói medieval transposta com maestria ao sertão mineiro. Uma saga de viagem em que um mistificado Morro da Garça, através de um eremita, faz chegar uma profecia ao herói, prediz o futuro e pode salvar-lhe a vida. Não há aqui mais nenhum paralelo possível aos fenômenos criativos dos autores do fandom. Nenhum sequer chegou-lhe aos pés e é uma revelação perceber como uma narrativa fantástica absolutamente regional pode ser tão universal.
Fecha o volume um ensaio em que Tavares realiza, de forma igualmente interessante e detalhada, o entendimento do conto “Um moço muito branco“, originalmente publicado em 1962 na coletânea Outras estórias. Trata-se do trabalho de Rosa mais claramente identificado com a ficção científica, visto que relata a experiência de uma comunidade interiorana que faz contato com um homem tão estranho e poderoso que só lhe resta ser alienígena. É claro que isso não é explícito e, ao final da história, não há um desfecho conclusivo, o que Tavares aproveita para apresentar seu estudo sobre os protocolos de pergunta e resposta, que podem ser observados na ficção de forma geral e na fantástica mais explicitamente.
Em poucas páginas, que se leem rapidamente, Tavares reúne uma quantidade absurda de informações e considerações, cita dezenas de autores nacionais e estrangeiros, de fantasia ou não, com os quais a obra roseana dialoga. Também não decepciona o leitor ao inserir, ilustrando suas análises, trechos brilhantes dos trabalhos avaliados, trazendo a própria obra de Guimarães Rosa aos olhos de leitores que, de outra forma, não se entusiasmariam com a tarefa de ler esse grande autor brasileiro.
O título do volume, como se vê, não é tão adequado quanto provocativo, já que a definição de pulp-fiction corrente no fandom não guarda absolutamente qualquer similaridade com o Guimarães Rosa realizou. Mas seria uma beleza se guardasse.
Podemos dizer que Guimarães Rosa fez ficção fantástica? Esta é uma pergunta tão sem resposta quanto os próprios textos do autor. Fica ao critério do leitor. Pessoalmente, acho que é um ótimo argumento numa roda de críticos antipáticos a fc&f, mas isso é o que menos importa. A melhor contribuição de Tavares com seus ensaios é reabrir a picada que Guimarães Rosa inaugurou na mata fechada e desconhecida que é a ficção fantástica brasileira. Há um caminho ali, e ele é seguro e honesto, sendo hard e soft e horror e fantasia e ficção científica, um por um ou todos ao mesmo tempo. E, acima de tudo, sendo literatura brasileira sem receio até de ser mainstream.
Cesar Silva

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