quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Escrever com o Coração

O Zen e a Arte da Escrita (Zen in the art of writing), Ray Bradbury. São Paulo: Editora Leya, 166 páginas. Tradução de Adriana de Oliveira.

O lançamento de um autor como Ray Bradbury é um acontecimento sempre especial. Aos 91 anos completados em agosto, é um dos decanos e mais talentosos escritores norte-americanos dedicados à ficção científica e fantasia. Mas este lançamento, em particular, é surpreendente e sui-generis. Não estamos diante de mais uma magnífica coletânea ou de um romance, mas de um volume de ensaios curtos, seguidos ao final por saborosos poemas.
Publicado originalmente em 1990, O Zen e a Arte da Escrita reúne nove textos que celebram sob grande inspiração a literatura, escritos entre os anos de 1961 e 1986. São vinte e cinco anos que cobrem o auge de sua carreira produtiva e que nos legou clássicos como os romances As Crônicas Marcianas (1950) e Fahrenheit 451 (1953), e coletâneas como Os Frutos Dourados do Sol (1953) e O País de Outubro (1955), entre outros.
Além dos temas versarem sobre os objetivos, a prática e as emoções que devem estar implícitas na criação artística literária, os textos também têm em comum a fluência, leveza e descontração, dando a impressão que foram escritos todos de uma vez. De certa forma, este aspecto demonstra a forma como Bradbury se posiciona sobre os assuntos tratados e, principalmente, a segurança de um estilo altamente refinado. E brilhantemente exposto também nos textos de não-ficção.
Os ensaios são escritos de uma maneira tão despojada, agradável, mas não menos vigorosa em seus argumentos argutos e, por vezes, duros, que colocam-se a par com suas histórias ficcionais em termos de prazer de leitura.
Para Bradbury o escritor não deve ser mecânico, objetivo, racional. É preciso deixar a inspiração surgir de onde menos se espera; libertar a mente de fórmulas e esquemas imitativos, trabalhar com o inconsciente, as lembranças – sobretudo da infância –, sonhos e com as associações aparentemente improváveis de palavras, sentenças, frases. Tudo para criar ideias que eventualmente sejam buriladas numa história que tenha a cara do escritor, que seja original no sentido de que só ele possa contá-la desta forma.
É certo que que os caminhos sugeridos e trilhados por Bradbury não são fáceis de serem alcançados por outros escritores. Além de tudo é preciso um certo talento inato, uma espécie de vocação em criar mundos com as palavras. Mas ele mesmo revela que o processo não é fácil e sim doloroso: levou dez anos para escrever sua primeira história publicável, não por coincidência uma de sua muitas obras-primas, o tocante conto “O Lago” (1942).
Para escrever bem é preciso escrever sempre; é preciso ler com regularidade – e de tudo. Mas sobretudo é preciso gostar do que se faz, escrever pelo prazer estimulado por uma espécie de necessidade de expor ao mundo uma visão, uma ansiedade interior. Há alguns anos tenho cobrado dos autores brasileiros de ficção científica da falta, a boa parte deles, do que chamo de “inquietação existencial”. Ora, é o mesmo que Bradbury defende – de uma forma mais convicente e encantadora, é claro –, para um autor se diferenciar dos demais, expor o seu eu particular de enxergar o mundo. Não necessariamente melhor em termos literários, mas com uma singularidade íntima só sua, o que lhe pode garantir alguma originalidade de expressão, mesmo que seja sobre um tipo de história de tema comum.
Bradbury admite que o autor iniciante deve buscar um modelo, imitando seu ídolo literário. Ele se antecipa em dizer que não se esquivou desta prática; mas apenas para dar uma espécie de moldura de estilo, permitindo ao autor desenvolver-se nele até poder impor uma forma e, principalmente, uma voz própria, esta mais importante porque relacionada com as suas inquietações particulares na hora de criar uma história.
Os textos são valiosos tanto para o escritor maduro, quando para o iniciante, pois menos do que lições apresentam exemplos de postura profissional, prática literária e o que deve motivar verdadeiramente um escritor. Não seguir modismos, não priorizar o dinheiro e sucesso rápido. Este é o caminho mais fácil para conseguir de um lado a popularidade fugaz nos fandons da vida mas, ao mesmo tempo, trilhar uma carreira segura em direção à mediocridade e insignificância.
Alguns artigos são simplesmente maravilhosos e chegam a emocionar por evocarem lembranças possíveis da infância do próprio leitor, como uma viagem com os pais, uma descoberta, uma amizade saudosa. Além disso relacionam aspectos da concepção de mundo, livre e jovial de Bradbury, desprovida dos embrutecimentos e cinismos da vida adulta, como principalmente em “Como Manter e Alimentar a Musa” e “Bêbado e no Comando de uma Bicicleta”. E neste último ele afirma:

“Todas as minhas atividades, todo o meu desenvolvimento, todos os meus novos trabalhos e novos amores foram causados por esse amor primitivo e original pelas bestas que vi aos cinco anos e continuei amando aos vinte, vinte e nove e trinta anos.” (pág. 76).

No fundo, Bradbury encontrou a sua voz, a sua autencidade reconhecível como escritor menos nos gêneros que aborda (fantasia e ficção científica), ou no seu estilo absurdamente lírico e poético, mas em sua infância: nos monstros ou seres imaginários (bestas, na tradução), no circo – a quem dedicou um romance fascinante e perturbador: Algo Sinistro Vem Por Aí (1962) –, na viagem a Marte e tantos outros sonhos vividos e não abandonados em sua vida adulta por meio de sua literatura.
Embora não seja uma coletânea de artigos estritamente sobre FC&F, certamente é endereçado a estes gêneros também, pois Bradbruy neles se exercita na maior parte de sua carreira, e revela mesmo aspectos curiosos de como criou algumas de suas histórias.
O livro é completado por belos poemas – também voltados à arte de escrever –, tais como cerejas em tão saboroso bolo. Pois mesmo com um título meio dúbio – tirado de um dos artigos reunidos para o livro –, não estamos diante de um guia de auto-ajuda para escritores, em especial iniciantes. É muito mais do que isso, com as opiniões fortes e os exemplos da vivência de um dos grandes escritores vivos.
— Marcello Simão Branco

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