quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Mito e Horror em H.P. Lovecraft

A totalidade pelo horror: O mito na obra de Howard Phillips Lovecraft, Caio Alexandre Bezarias. Prefácio de Raul Fiker e apresentação de Marcos César de Paula Soares. 154 páginas. Editora Annablume/Fapesp, 2010.

A partir desta primeira década do século XXI o ambiente universitário brasileiro passou a conviver com uma nova tendência: a de trabalhos acadêmicos sobre temas e autores alternativos ou marginais ao cânone literário. Claro que é uma tendência minoritária, mas com certa regularidade. Provavelmente deve ter sido efeito primeiro do surgimento de uma nova geração de estudantes e pesquisadores, que buscaram refletir sobre os seus interesses mais próximos e influentes; e em segundo lugar, pela aposentadoria de uma geração de acadêmicos, tradição literária mais conservadora. Dentro deste contexto, um dos trabalhos mais representativos e interessantes é A totalidade pelo horror: O mito na obra de Howard Phillips Lovecraft, originalmente uma dissertação de mestrado defendida no Departamento de Letras, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2006, e que em 2010 finalmente foi publicada como livro.
É emblemático também que esta obra aborde justamente um dos maiores outsiders da literatura do século XX, um sujeito tão admirado por seus escritos quanto incompreendido por sua personalidade, num dos casos mais contundentes de confusão entre estes limites. Claro, estamos falando de H.P. Lovecraft (1890-1937).
Lovecraft viveu toda a sua vida numa área restrita do Nordeste dos EUA, descendente de duas famílias que teriam sido originárias dos primeiros imigrantes que vieram para a Nova Inglaterra, puritanos religiosos e homogêneos social e culturalmente. O autor nunca escondeu a nostalgia dos seus antepassados e seu estilo de vida que em tudo diferia do momento histórico que ele presenciou: a transformação radical do modo de vida rural para o urbano, com uma enorme e rápida industrialização, além de uma intensa imigração, como parte deste processo de desenvolvimento econômico, que trouxe para o país pessoas das mais diferentes paragens e costumes estranhos. E esta nostalgia foi aprofundada pelas dificuldades econômicas e familiares que o autor enfrentou, tornando-se quase que um recluso que passava a maior parte do tempo escrevendo rodeado por dezenas de gatos.
Estas peculiaridades de sua vida tornaram-se um ingrediente a mais para a compreensão de sua obra, tão diferente, original e recheada de polêmicas e muita influência em fãs e autores que o cultuam e imitam até hoje, inclusive no Brasil.
Nesse sentido é que a obra de Caio Bezarias se destaca do ponto de vista do conteúdo. Pois analisa o autor e a criação de seu mito – as histórias do ciclo de Cthulhu – de uma perspectiva desmistificadora tanto com respeito à personalidade do homem, como de sua obra. Mostra sim que ambas estão intimamente imbricadas, mas procura interpretá-las com mais sofisticação e refinamento do que a que encontramos costumeiramente.
Colin Wilson na excelente introdução ao seu romance neo-lovecraftiano, Parasitas da mente (1977), argumenta que o fascínio que Lovecraft exerce advém de sua obsseção pelo terror e pelo repulsivo, explícito tanto pela intensidade imagética quanto pelo estilo adjetivado e barroco do seu texto. Para além do reconhecimento de um outsider de seu tempo, a exemplo de outros em outras épocas, o romântico Lovecraft levou às últimas consequências criativas sua rejeição e desajuste ao mundo que vivia.
A esta moldura social e literária construída por Wilson podemos contrapor a visão mítico e histórica de Bezarias, que inicia seu trabalho com a vinculação de Cthulhu e os outros deuses dos Grandes Antigos através da ideia do mito original e fundador. Os tempos imemoriais, antiquísssimos e muito antes do surgimento da humanidade seriam cosmogônicos. Este seria o mais profundo, pois daria origem e conformação aos demais e teria uma explicação fundante das raízes do mundo. Bezarias mostra, com exemplos do próprio Lovecraft e de autores que estudaram os mitos, como Cthulhu é um mito deste tipo e porque isso ajuda a entender suas características fatalistas e niilistas, entre outras.
Por tudo o que se sabe, o mundo ideal para Lovecraft era o dos colonos norte-americanos, com suas fazendas e modo de vida puritano – mas não religioso no seu caso, já que ele era racionalista e ateu –, e composto por seus iguais em termos culturais: brancos e falantes da língua inglesa. Tudo o que destoasse deste quadro sócio-cultural seria desagregador e ameaçador. O livro analisa de forma instigante como este mundo idealizado foi desafiado e modificado pela transformação dos EUA numa potência industrial, e de como sua profunda negação rendeu os frutos literários de sua obra de reação ao status quo. Cthulhu e Os Grandes Antigos, descobertos por infelizes pesquisadores que defendiam o modo de vida puritano, representam esta desordem industrial e cultural, horrenda ao ponto de significar o fim da própria humanidade. Se podemos entender as características da obra de Lovecraft através de sua identidade, outro caminho seria a dos efeitos da pobreza em sua vida. Wilson percorre com mais atenção esta seara.
Como sublinha Bezarias, a despeito desta crítica ao mundo em transformação sugerir, em tese, uma prosa de estilo mais modernista, duvidando mesmo das certezas racionais que este mundo sugere, em termos literários Lovecraft conservava uma forma bastante conservadora, realista, não modernista. Ou seja: ele usava um estilo tradicional que, numa primeira visão, se prestaria a uma concordância com a realidade, para rejeitá-la radicalmente. Certamente um paradoxo que ajuda a tornar os escritos de Lovecraft ao mesmo tempo mais regressivos, críticos e libertadores de qualquer tendência: seja ela artística, seja ela social. Por esta linha, Bezarias recompõem em outro nível a crítica muitas vezes apressada ao estilo adjetivado e em primeira pessoa de Lovecraft, que seria pura e simplesmente deficiente. Pois ele poderia ser visto como parte desta rejeição, explicitando subjetivamente a incompreensão, o desconforto e o medo, através dos personagens.
A análise de Bezarias sobre a função utópica das histórias do ciclo também é muito interessante, ao mostrar que a volta dos Grandes Antigos de seu sono eterno, representaria a desordem suprema, o caos em seu sentido mais absoluto, destruindo a civilização. Seria a confirmação em estado mais acabado das rejeições que Lovecraft tanto aponta: o horror representado pela industrialização, urbanização e miscigenação cultural. Para Bezarias estaríamos diante de uma distopia: este mundo rejeitado por Lovecraft já seria distópico, mas o seu limite seria niilista, pois levaria o retorno de Cthulhu e seu panteão, trazendo o caos, ao fim da humanidade ou da civilização.
Em seu conjunto, A totalidade pelo horror é um título adequado, pois expressa a intenção da obra: a tentativa de compreender a realidade por uma lógica que a rejeita e por isso é mais bem expressa pelo horror. Nesse sentido, no delírio criativo de Lovecraft vislumbra-se o potencial de suas virtudes críticas e os limites niilistas e reacionários de sua visão de mundo.
Nesta análise de cunho acadêmico e no âmbito dos estudos culturais, Bezarias traz uma contribuição relevante tanto para o ambiente acadêmico, como para a comunidade de leitores e escritores de ficção científica e horror do país, ainda tão carentes de boas obras de não-ficção, em especial a que trate de estudos de autores e aspectos de sua obra. Mas se o mito de Cthulhu é, por assim dizer, dissecado e de forma coerente com o objetivo proposto, acaba por transparecer uma espécie de “deshorrorização” do primeiro plano da obra de Lovecraft, a do horror e mais especificamente do “horror cósmico” em si, por seus efeitos próprios de estilo e seus significados de ameaça oculta e irresistível ao mundo cotidiano. Como observou Wilson, tais características são as grandes responsáveis pelo inegável fascínio que a obra de Lovecraft continua a transmitir através de gerações de leitores e aficcionados.
Marcello Simão Branco

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