quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Homem que Adivinhava, André Carneiro

O Homem que Adivinhava, André Carneiro. 152 páginas. São Paulo: Editora Edart, coleção Cienciaficção no. 8. Lançado originalmente em 1966.

André Carneiro faleceu em novembro de 2014 e nos deixou uma obra das mais significativas dentro da ficção científica brasileira. Muito atuante ainda antes de seu ingresso na FC, como jornalista e poeta, Carneiro tornou-se a partir dos anos 1960 no principal nome do gênero no país, e o mais publicado e reconhecido no exterior.
Três obras estabeleceram sua reputação a partir desta época. As coletâneas  O Diário da Nave Perdida (1963) e O Homem que Adivinhava (1966), ambas publicadas pela editora EdArt, e seu ensaio pioneiro Introdução ao Estudo da “Science-Fiction”, de 1967.
Em O Homem que Adivinhava, o autor retoma alguns dos temas de seu interesse já vistos em Diário da Nave Perdida. Mas longe estão de meras variações sobre os mesmos temas, pois ele os explora sob novos ângulos e pontos de vista, sobretudo a questão da incompreensão entre as pessoas e as várias formas com que essa incompreensão se manifesta.
A ficção científica de André Carneiro é sobretudo humanista, preocupada com os impactos que a ciência e a tecnologia podem ter sobre a sociedade e a cultura. Em O Homem que Adivinhava, somos expostos a níveis refinados de observações sobre a condição humana, mostrando mais uma vez como o autor é um crítico sensível sobre a ambiguidade do comportamento humano.
A coletânea apresenta oito histórias que se equilibram em termos de qualidade, o que é difícil em se tratando de um conjunto de trabalhos tão diferentes entre si. Talvez porque, além da semelhança no subtexto das narrativas, a prosa seja segura, fluente, com um estilo já maduro quando o autor tinha 46 anos, e que seria ainda mais desenvolvido nas décadas posteriores — ainda que o rico impacto de suas ideias e reflexões tenha obtido melhor resultado no conto e na novela, do que nos seus dois romances, Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991).
A questão principal que permeia os contos de O Homem que Adivinhava são as dificuldades de comunicação, relacionamento e compreensão entre as pessoas. Se é verdade que esta dimensão ganharia contornos ainda mais complexos na sua coletânea Confissões do Inexplicável (2007), livro de notável riqueza psicológico-existencial, já nos anos 1960 Carneiro possuía pleno domínio da palavra e do que queria transmitir ao leitor ao contar-lhe uma história.
Alguns contos são aparentemente esquemáticos, como “Um Casamento Perfeito”, “Um Caso de Feitiçaria”, “Planetas Habitados” e “O Relatório Secreto”, mas a previsibilidade das ações não esconde o tratamento sutil a respeito das situações humanas, nem a afirmativa de que a vida moderna e tecnológica, ou a busca e a prática de rituais sobrenaturais, não conduzem à felicidade ou paz interior às pessoas. Ou então, que o que consideramos como certo ou normal guarda estreita — e nem sempre aceita — relação com um certo relativismo moral, trazendo ao primeiro plano virtudes esquecidas ou subestimadas, como humildade ou modéstia em relação tanto ao desconhecido no plano externo (“Planetas Habitados”), quanto no interno à mente (“O Relatório Secreto”), também deixando nas entrelinhas que não devemos nos levar tão a sério.
Duas histórias abordam mais de perto a questão do preconceito e desajuste social. Em “O Homem que Adivinhava”, um sujeito tem o dom da clarividência — enxerga o futuro de outras pessoas, mas isto acaba por conduzi-lo ao caminho fácil e traiçoeiro da fama rápida. Da mesma forma que as pessoas o bajulam, também o discriminam quando seus poderes começam a falhar. Já em “O Mudo”, o talento que diferencia o protagonista é mais sutil e mesmo discutível. Ele não fala e não ouve, mas tem uma sensibilidade apurada em lidar com as plantas. Vive num mundo marginalizado e particular, até que se apaixona e descobre o que as pessoas verdadeiramente pensam dele. As duas histórias trabalham com o preconceito da sociedade e a dificuldade dos personagens em lidar com suas diferenças; e Carneiro não é nem um pouco otimista quanto aos desdobramentos.
Duas noveletas estão mais próximas de temas tradicionais da ficção científica: “A Espingarda”, uma história de pós-holocausto nuclear, e “A Invasão”, sobre o contato com seres extra-terrestres.
“A Invasão” é uma curiosa história de fc ufológica e mostra como seria a reação da imprensa, dos políticos, dos militares, das pessoas do povo e dos cientistas ante a aterragem de dois gigantescos discos voadores numa floresta. O país destinatário do contato é Calamar, nome de um Brasil fictício, que não por coincidência vive sob uma ditadura militar. Assim, o autor pode se sentir mais livre para criticar a falta de transparência, a censura e a truculência dos militares no poder, e, sob o caos, lidar com um evento de interesse a toda a humanidade. O texto é narrado como se fosse apresentado em recortes, com flagrantes de comentários e noticiosos a respeito do evento, e mostra novamente como a questão do preconceito e da luta pelo poder está enraizada no comportamento das pessoas, ainda mais numa circunstância tão especial.
Carneiro é mais feliz, porém, com “A Espingarda”, um dos melhores textos de sua carreira. Incluída em Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica, antologia organizada por Roberto de Sousa Causo em 2007, é um relato angustiante sobre um sobrevivente do pós-holocausto que vaga à procura de comida, abrigo e, sobretudo, companhia humana, que resgate algum sentido à sua vida. A certa altura ele encontra uma pessoa, mas o contato não é pacífico, pois o outro vive cercado em uma casa de muros altos e brada para que o visitante vá embora, pois ele teria trazido a praga do sul do país. Como notou M. Elizabeth Ginway (in Ficção Científica Brasileira; 2005), há uma referência sutil à clivagem entre o Sul desenvolvido e industrializado e o Norte miserável e rural. Embora o Brasil tenha mudado desde então, a desigualdade regional continua significativa.
“A Espingarda” é um flagrante de um mundo que se desfez e deixou apenas restos aos sobreviventes. Tanto é que a imagem do homem com sua espingarda e a estrada como destino, não comunica um sentido de esperança, mas antes de solidão e incerteza sobre o que virá.
Publicado há 49 anos, O Homem que Adivinhava foi premiado como “Livro do Ano”, pela Câmara Municipal de São Paulo em 1966, e ilustra o destaque que o autor trouxe à fc brasileira, ao mostrar que, se realizada como literatura de qualidade, a questão do preconceito literário recua a um plano secundário. Ainda mais se o autor reflete de forma despojada e madura sobre temas importantes da condição humana, seja em que época, conjuntura tecnológica ou tipo de sociedade que estivermos inseridos.
Marcello Simão Branco

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