quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O vampiro da Mata Atlântica, Martha Argel

O vampiro da Mata Atlântica, Martha Argel. 176 páginas. Capa de Billy Argel. Idea Editora, São Paulo, 2009.

Já tem algum tempo que a vampiromania invadiu o fandom brasileiro. Na verdade, suas raízes são antigas, vêm das seções de cinema nas madrugadas da tv que exibiam semanalmente os clássicos da Hammer, histórias de estilo gótico com vampiros que geralmente eram nobres da Europa oriental.
No ambiente da literatura popular para mulheres, romances fogosos com vampiros e lobisomens nunca foram novidade, mas explodiram sob a influência dos livros da franquia Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire, 1976), de Anne Rice, que propunha um vampiro humanizado, sensível e ansioso por amor e carinho. O vampiro deixou de ser uma aberração para se tornar um objeto de desejo, com promessas sexo selvagem e amor literalmente eterno. Nos anos 1980, especialmente depois de filmes como Fome de viver (The hunger, 1983), a liberação feminina chegou ao vampirismo. Antes relegadas a  situação de escravas do vampirão chefe, as vampiras ganharam autonomia e passaram a ter seu próprio séquito.
As editoras de romances só perceberam que estavam dormindo no ponto em 2001, quando foi lançado o primeiro volume da franquia Os sete, do escritor paulista André Vianco, que atraiu a atenção dos leitores e vendeu dezenas de milhares de exemplares. Desde então, antologias, novelas, romances, trilogias com histórias de vampiros, de autores brasileiros estrangeiros, têm brotados nas estantes como cogumelos. Porém, apesar da grande atividade no gênero, os escritores elegeram unanimemente o modelo dos vampiros humanizados, como os de Entrevista com o vampiro. Realimentados por outras franquias estrangeiras, a coisa só fez acirrar-se, ao ponto de o mito original do vampiro ter praticamente se perdido.
Enfim, uma luz, embora o termo não seja totalmente adequado.
A escritora paulista Martha Argel, uma especialista em ficção fantástica, resolveu que era hora de retomar o mito a partir de suas raízes primitivas. E o resultado foi o romance O vampiro da Mata Atlântica.
Martha iniciou a carreira de ficcionista escrevendo fc. Seus primeiros trabalhos saíram nos livros virtuais Lugar de mulher é na cozinha, antologia organizada pela própria Martha, e a coletânea individual Contos improváveis, ambas publicadas em 2000 pela editora Writers. Os vampiros começaram a predominar seu trabalho a partir do romance Relações de sangue (Novo Século, 2002), seguido da coletânea O vampiro de cada um (da autora, 2003). Marta afastou-se um tantos dos sugadores em 2005, com a coletânea virtual Olhos de gato (Writers) e, em 2006, com O livro dos contos enfeitiçados, ambos com histórias de fantasia de horror.
Enfim, retornou em grande estilo aos vampiros com O vampiro da Mata Atlântica, uma história que investe num monstro nada glamouroso, nascido do ódio, sem qualquer interesse além de matar e comer. Martha também inova ao estabelecer a origem do vampiro em uma mitologia diversa. Não há, neste vampiro, a convencional mordida que transmite o vírus maldito. Aqui, a maldição é literal, decorrente de suas próprias maldades humanas. Morto, renasce monstro faminto que assombra seu vilarejo localizado num remoto trecho na região do Alto Ribeira, até que este, abandonado pelos moradores, fica deserto e em ruínas. O lugar torna-se tabu e os demais habitantes da região não se aproximam dele.
Pelo menos até que dois pesquisadores universitários, Xavier Damasceno e Júlio Levereaux, aparecem por lá, contratados por uma empresa para realizar um levantamento ecológico na região, com vistas a implantação de uma área de preservação ambiental. Equipados e com muitos suprimentos, querem aproveitar a oportunidade para também realizar estudos pessoais sobre os animais nativos, que pode valer pontos acadêmicos importantes. Leveraux é apaixonados por mamíferos, especialmente morcegos, dos quais sabe tudo e mais um pouco, enquanto Xavier é ornitólogo, interessado nas raríssimas harpias, animais em grave risco de extinção que foram avistadas na área.
O tempo chuvoso dificulta a chegada ao local e fica claro aos cientistas que eles não vão conseguir sair de lá antes do fim das chuvas. Como não estão com pressa, montam acampamento nas ruínas do vilarejo e começam a explorar as ricas flora e fauna locais.
Embevecidos pela natureza exuberante e concentrados no trabalho, não percebem que algo não vai bem por ali. Antes que possam se proteger, o vampiro investe sobre Leveraux, deixando-o ainda vivo, mas fora de ação. Fica então a cargo do inseguro Xavier a responsabilidade por enfrentar a criatura, num jogo mortal que Xavier não tem a menor chance de vencer. O isolamento, a rusticidade do lugar, o clima instável e a falta de recursos favorecem em tudo ao predador, que se diverte com as pífias estratégias de Xavier para proteger a si e a seu colega ao longo de cada noite de terror.
A única esperança de Xavier é sua criatividade e uns parcos conhecimentos sobre a lenda dos vampiros que Leveraux lhe explicou rapidamente, durante o primeiro dia de pesquisas. Mas isso pode não ser o bastante.
Muito inteligentemente, Martha aproveitou sua própria experiência acadêmica como ornitóloga para construir a introdução da história. A primeira metade do romance mal toca no assunto dos vampiros. Ela a usa para apresentar os personagens e suas motivações pessoais, com grande sucesso. Uma antiga rivalidade entre os dois cientistas tempera o relacionamento, da mesma forma que a cuidadosa descrição da Mata Atlântica, muito bem conhecida pela escritora, e a descrição detalhada da metodologia de pesquisa dos cientistas ajuda a dar verossimilhança ao ambiente. Quando finalmente o monstro se revela, toda a incredulidade do leitor já foi desmontada. Ficamos rendidos ao horror daquela criatura improvável e completamente real, tanto nas assombradas noites de Xavier, como nos nossos próprios pesadelos.
Martha, que sempre teve um texto correto e técnico, ganhou uma consistência inédita neste romance devido a ter situado a história em um ambiente familiar às suas experiências pessoais. É inclusive pertinente supor que algumas das situações descritas sejam autobiográficas.
O volume flerta com o mercado paradidático ao inserir, depois da história, artigos instrutivos sobre a Mata Atlântica, a região do Alto Ribeira e seus animais, com atenção especial para os morcegos, é claro.
Também cabe aqui ressaltar o belo trabalho de direção de arte, com uma imagem fabulosa na capa assinada pelo respeitado designer Billy Argel, irmão da aurora, além de um acabamento gráfico perfeito, que é padrão nas edições da Idea.
Cesar Silva

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