quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Silicone XXI, Alfredo Sirkis

Silicone XXI, Alfredo Sirkis. 199 páginas. Capa e ilustrações internas de Al Voss. Editora Record, Rio de Janeiro, RJ. Lançamento original em 1985.

Quando este romance foi publicado, o Brasil vivia o período de sua transição democrática, depois de duas décadas de autoritarismo militar. Os ânimos entre democratas e apoiadores do regime ainda estavam tensos, à flor da pele, na expectativa de ajustes de contas em meio a tantas arbitrariedades cometidas e a esperança de um país mais justo e livre.
Neste contexto, não surpreende que Alfredo Sirkis resolvesse publicar Silicone xxi, mesmo que sob a roupagem de um “romance policial futurista”, como anunciado na capa. Foi uma solução inteligente para alguém que não só testemunhou, como participou ativamente de movimentos de esquerda contra o regime militar, como ficou registrado em seu livro Os carbonários, que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor não-ficção ainda em 1981. Sirkis adotou uma perspectiva muito usada para se criticar um regime de exceção, situando suas mazelas numa época futura, em princípio deslocada do tempo que ele pretende satirizar.
Em Silicone xxi estamos no Rio de Janeiro em 2019. A cidade mantém sua aura de “maravilhosa” e, ao que parece, remodelada em termos urbanos e arquitetônicos, com edifícios futuristas, ruas em forma de escadas rolantes horizontais e com o predomínio da informática e de robôs que executam desde serviços domésticos até sexuais. Duas apostas futuristas que, até os dias de hoje pelo menos, não vingaram estão no cotidiano deste futuro próximo: os videofones – telefones com telas onde se vê a pessoa com quem se conversa – em certo sentido, as webcans cumprem este papel, mas de maneira secundária –, e os aerocarros. Estes dois elementos, aliás, estão presentes num romance e filme que em parte parece ter inspirado a criação de Sirkis, Blade Runner, o caçador de andróides. E assim como nesta ficção científica noir, o livro brasileiro também é assim nomeado e conduzido por um investigador que procura solucionar uma série de crimes sexuais cometidos por um misterioso matador.
As vítimas são todos travestis – chamados no livro de andróginos – mortos depois do ato sexual por seu algoz através de uma arma privativa das Forças Armadas, uma pistola de raios laser – outro lugar comum que ainda não se realizou –, chamada de “Pistola L”. Após o terceiro assassinato, ocorrido no movimentado Olympus Aeromotel, o investigador José Balduíno assume o caso que trará muito suspense, ação, e reviravoltas.
Da mesma forma que os filmes e romances noir costumam apresentar roteiros confusos e personagens complexos do ponto de vista psicológico, o mesmo é encontrado em Silicone xxi, na figura de Balduíno, um mulato e cinquentão divorciado, afastado dos filhos, sem muitas perspectivas de crescimento na carreira e com uma vida sexual menos movimentada do que ele gostaria. Por sinal, Balduíno é um dos raros protagonistas negros da ficção científica brasileia. Outros personagens interessantes compõe o romance, como a jornalista Lili Braga – com quem Balduíno quer ter um relacionamento –, uma mulher que assume a independência implícita de sua profissão também com relação ao seu comportamento social, e o dono do motel onde ocorre um dos crimes, o argentino Pepe Moscoso, um voyer que secretamente espia o desempenho sexual dos seus clientes e tem relações sexuais com erorobôs (robôs eróticos) femininos e masculinos – ao mesmo tempo.
O contexto propriamente crítico aos militares aparece quando descobre-se quem está por trás dos crimes. Trata-se do Coronel Estrôncio, reformado do Exército que na condição de segurança do Museu Nuclear de Angra dos Reis, lidera um esquema de contrabando de lixo radiotivo e um grupo paramilitar, os Filhos de Plúton, ambos também com a participação do diretor do museu, o Próton Nogueira. Talvez o leitor já deve ter intuído o rumo do sarcasmo de Sirkis: os setores militares entusiastas do desenvolvimento da energia nuclear no Brasil. De fato, eles foram muito influentes durante os anos 70, a começar pelo governo do General Ernesto Geisel (1974-1979), que queria fazer do Brasil uma grande potência do Terceiro Mundo. Pois 1975 o país assinou um acordo de cooperação e transferência de tecnologia nuclear com a Alemanha Ocidental, o que tornou possível a construção da usina nuclear de Angra I, e o projeto de construção de mais duas, Angra II e Angra III. Embora a justificativa do governo tenha sido a de praxe, ou seja, o investimento de energia nuclear para “fins pacíficos” – devido à necessidade de mais energia para o desenvolvimento do país –, havia uma desconfiança justificada de que a principal intenção era possibilitar a contrução de uma bomba atômica. Os norte-americanos foram os primeiros a insinuar o Brasil de tal intento, o que acabou esfriando o relacionamento entre os dois países. Como de fato viria a ser provado, em 1990, o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), mostrou o lugar que, supostamente, seria usado como testes para a explosão da bomba brasileira, a Serra do Caximbo, entre o sul do Pará e o norte de Mato Grosso.
Em Silicone xxi, um governo social-democrata apoiado pelos militantes ambientais – os verdes – assumiu o governo do Brasil em 2005 e desativou as usinas nucleares. A partir daí, este grupo de militares mais radicais, inconformados, procuraram se rearticular na clandestinidade para lutar pela futura nuclearização do país, mesmo que através de ações ilegais e politicamente autoritárias. Fundaram até mesmo uma exótica corrente ideológica para justificar suas ações entre seus participantes, o movimento atomista.
Embora nos dias de hoje tal comportamento possa parecer ridículo, o tema do processo de nuclearização do Brasil foi muito candente nas décadas de 1970 e 1980 e ao criticar os militares sob esta ótica, Sirkis está refletindo sobre a postura radical de parte dos militares, aqueles mais diretamente responsáveis pela repressão, a corrente dos “linhas-duras”. Além disso, a ênfase nuclear assume importância especial para o autor já que as usinas foram construídas no Estado do Rio de Janeiro, onde ele morava, além dele ser também um combativo militante do movimento ambiental no país.
Ao nomear os militares rebeldes com o nome de elementos químicos e de componentes do átomo, Sirkis claramente realiza um engraçado deboche com a postura arrogante e reacionária, tanto no discurso, quanto na prática, muito em voga no período em que o livro foi escrito. E vai além, pois o tal Estrôncio possui um pênis de silicone, que infla ao ser bombeado. Assim, os militares são também mostrados como sexualmente impotentes e ambíguos, já que o assassino faz sexo com travestis.
Talvez o leitor possa imaginar que o romance não vá além de um pastiche de histórias noir e com um certo ranço vingativo, o que o tornaria superficial e panfletário. Longe dessas características e sabe por que? Pelo fato de Silicone xxi ser, antes de mais nada, uma história divertida, com bom ritmo, soluções criativas – como a da ambientação futurista e a inserção de novas tecnologias no cotidiano –,  e um certo ar de não se levar muito a sério. Como se, afinal, um romance pulp noir e militares rancorosos também não devessem ser levados muito a sério. O primeiro aspecto do ponto de vista positivo, do bom entretenimento, mas com conteúdo crítico; e o segundo, pelo risível de posturas tão anti-democráticas e preconceituosas.
Para corroborar este tom descontraído, o romance tem ótimas ilustrações do franco-brasileiro Al Voss. Além da bonita ilustração de capa, também ilustrações internas que antecedem os capítulos mostrando situações importantes de cada um deles, como se fosse quadrinhos. Inovador e bem concebido. Por razões como estas Silicone XXI é uma boa leitura, um romance que mantém interesse mesmo depois de vinte e cinco anos de sua primeira publicação.
— Marcello Simão Branco

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