quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A Cidade e as Estrelas, Arthur C. Clarke

A Cidade e as Estrelas (The City and the Stars), Arthur C. Clarke, 278 páginas. Tradução de Hélio Pólvora. Arte de capa: Vagner Vargas. Devir Livraria, Coleção Pulsar, 2012.

Desde a sua morte em 2008 Arthur C. Clarke tem recuperado parte de seu merecido espaço no mercado editorial brasileiro. Seus três livros mais importantes foram relançados no país desde então. A editora Aleph trouxe de volta O Fim da Infância (em 2010) e Encontro com Rama (em 2011), em duas edições caprichadas. E em 2012 foi a vez da Devir também fazer um trabalho editorial de relevo – a começar pela belíssima capa – ao relançar o cultuado A Cidade e as Estrelas.
Talvez o leitor estranhe chamar o livro de cultuado. É que, para além do prestígio que o livro adquiriu quase que imediatamente quando lançado em 1956, tornando-se um clássico nos anos seguintes, eu tenho uma relação pessoal com este livro.
A Cidade e as Estrelas foi o livro que inaugurou minha sequência de leituras regulares de FC, que vem desde o distante ano de 1985, quando tinha os meus 17 anos. É provável que todo leitor de FC tenha aquele livro que o fisgou em definitivo para o gênero. Pense no seu. No meu caso foi justamente A Cidade e as Estrelas.
O relançamento da Devir é oportuno pelo fato da última edição no país ter sido da Abril Cultural, em 1984. Mas para mim também foi interessante porque me permitiu reler o livro e, inevitavelmente, comparar com as impressões que tive quando o li pela primeira vez.
Alguns dizem – não sem razão – que reler um livro de que se gostou na juventude é arriscado, pois o livro pode ter envelhecido, ou mais provavelmente o leitor é que se tornou mais amargo. O que posso dizer é que reler A Cidade e as Estrelas me surpreendeu de novo. Não imaginava sentir o mesmo sense of wonder, mas se tal não foi o caso esteve próximo.
A Cidade e as Estrelas conta a história de Diaspar, uma cidade em forma de cúpula, hipertecnológica, que se isolou do resto da Terra, e do Universo. Criou uma utopia em que viceja o bem-estar material a ponto de abolir a própria morte. A construção desta cidade, governada por um supercomputador, é envolta em mistérios perdidos num tempo suficientemente longo para toda verdade ficar esmaecida: um bilhão de anos no futuro. Os humanos teriam conquistado a galáxia, mas sido expulsos de sua glória estelar por outra raça, chamada de Invasores. Não seríamos destruídos se nos recolhêssemos ao nosso planeta. Diaspar, portanto, seria o resultado desta guerra perdida. O recolhimento pelo medo da extinção, que se tornou o receio do desconhecido, não para além da Terra, mas para além dos próprios limites de Diaspar.
Os habitantes de Diaspar tinham uma vida praticamente imortal, pois depois de centenas de anos “adormeciam” para renascerem em novos corpos a partir dos dados pessoais armazenados por um banco de memórias ativados pelo Computador Central. Os criadores da cidade, contudo, queriam, de tempos em tempos, incutir alguma variação à monotonia da utopia. Programaram, então, o nascimento dos Únicos. Pessoas diferentes, sem passado anterior – pois os demais habitantes lembravam de suas vidas passadas –, que trariam consigo um valor humano esquecido: a curiosidade, o desbravamento do desconhecido. Alvin vem cumprir este papel, tornando-se o único que tirará os habitantes de Diaspar de seu conforto letárgico e os confrontará com verdades incômodas, mas necessárias à sua sobrevivência. Como parte disso, Alvin foge e descobre a pastoral comunidade de Lys, uma outra construção utópica humana na Terra, mas com valores distintos: reina a vida simples, o ciclo normal de vida e morte e a capacidade telepática, talvez o grande trunfo deste outro povo. Contudo, também cultivam a solidão e o medo do desconhecido.
A Cidade e as Estrelas permite muitas leituras. Uma delas é da dicotomia entre dois modos de vida, representados por Diaspar e Lys. No fundo o que Clarke sugere é que as duas utopias não se bastam a si mesmas, mas o que mais lhes falta só pode ser encontrado no seu oposto. Contudo, o centro do romance está na figura de Alvin, um personagem admirável em sua coragem e ingenuidade, representando de forma clara, o sentido de especulação e curiosidade inata da própria ficção científica como forma de expressão artística. Creio que poucos personagens expressaram tão bem o sentido de mudança tão caro ao gênero. Outra interpretação possível é ver em Alvin a figura de um enviado – neste caso seria de alguém programado –, um messias que altera de forma radical e definitiva a vida e os valores de todos.
Este romance de Clarke teve uma versão anterior publicada em 1946 chamada de Anti-Crepúsculo (Against the Fall of Night). Uma novela que Clarke reconhecia carecer de mais contextualização sobre as ideias e tramas que criara. E assim ele o reescreve e transforma, dez anos depois, no romance A Cidade e as Estrelas. De fato uma obra mais bem trabalhada e acabada, tanto em termos narrativos como no desenvolvimento do enredo.
Em A Cidade e as Estrelas, Clarke mostra sua visão de mundo cósmica, de como deverá ser inevitável para o homem – em algum momento de sua história – ter de lidar com o Universo, com todas as possíveis implicações científicas, filosóficas e religiosas. Mas talvez possamos afirmar que esta visão clarkeana da transcendência cósmica do Homem têm um aspecto mais, digamos, luminoso e otimista, do que visto, por exemplo, no romance O Fim da Infância (Childhood´s End, de 1953). Pois neste o homem, prestes a alcançar o espaço, é surpreendido pela chegada dos Senhores Supremos que o impedem de sair da Terra e o tiraniza. Constróem uma outra utopia social, mas esmagam os sonhos humanos de liberdade e exploração  do universo. É curioso que em A Cidade e as Estrelas ocorre o inverso: o homem teria chegado aos confins da galáxia, mas também devido ao contato com uma inteligência alienígena, fora obrigado a se recolher no seu casulo, a Terra.
O sentido mais otimista de Clarke em A Cidade e as Estrelas se dá pelo tom abertamente exploratório do livro, de excitação pela descoberta do desconhecido, a despeito – ou até por causa – da estrutura social contrária solidamente estabelecida há um bilhão de anos. Alvin lidera a Terra à sua redescoberta e, mais que isso, a suas verdades perdidas nas brumas do tempo.
Por contraste, vemos em O Fim da Infância uma visão pessimista do destino do homem. De como nossa instabilidade política e imaturidade social nos renega a saída para o espaço e nos aprisiona para um fim alheio ao nosso livre-arbítrio, nas mãos de civilizações extraterrenas misteriosas e com objetivos obscuros. Em certo sentido o romance (e o filme), 2001, Uma Odisséia no Espaço (ambos de 1968), recupera uma certo sentido de redenção cósmica menos sombria, ainda que não clara sobre o destino final do homem.
Já em A Cidade e as Estrelas, Clarke estava, de fato, muito inspirado, não só em termos filosóficos e cognitivos, mas também em termos narrativos, com algumas passagens absolutamente admiráveis. Como quando Alvin e seu companheiro Hilvar chegam aos Sete Sóis, nos confins da galáxia; quando as verdades ocultas sobre o passado distante são reveladas, pela enigmática mente pura de Vanamonde; em momentos simples, mas líricos como, por exemplo, quando Alvim visualiza a chegada da noite nos limites da cúpula de Diaspar.  Uma epifania. Além disso, Clarke também especula com sagacidade sobre temas como realidade virtual, inteligência artificial, controle climático, imortalidade e telepatia com uma elegância poucas vezes retomada na literatura de FC. Enfim, um livro magnífico.
Alguns críticos o acusam de pender para soluções pulp em algumas passagens, especialmente na conclusão do livro. Pode até ser, pois a história se situa no contexto do tipo de FC padrão que se praticava na época, a Golden Age, possuindo um ritmo de aventura e voluntarismo que soa pouco verossímil em algumas passagens, como quando algumas questões são resolvidas rapidamente, como que para não atrapalhar o ritmo principal do enredo narrado. Mas não creio que isso diminua a obra, pois poucas vezes um livro de FC apresentou tal riqueza de ideias e profusão de soluções interessantes. Clarke estava no auge da criatividade e do seu lirismo como autor. E isto transparece página após página, num processo de crescimento até o clímax.
Se me arrependi de alguma coisa nesta releitura de A Cidade e as Estrelas foi ter ficado tantos anos sem relê-lo. O arrepio na pele que senti ao encerrar a leitura me lembrou o da adolescência, e isso só realça porque, ao menos para mim, este é um dos mais belos livros de ficção científica já escritos. 
Marcello Simão Branco

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