terça-feira, 3 de março de 2015

A bondade dos estranhos, João Barreiros

A bondade dos estranhos, João Barreiros. 210 páginas. Capa: Verena Peres, sobre ilustração de Marcelo Tonidandel. Adaptação para o português brasileiro por Luiz Marcos da Fonseca. Tarja Editorial, São Paulo, 2011.

Um dos mais bem-vindos fenômenos da Segunda Onda da ficção científica brasileira foi o intercâmbio com os autores portugueses, efetivado inicialmente através dos fanzines brasileiros e robustecida pela presença de representantes brasileiros nos congressos de fc&f realizados em Portugal, eventos estes em tudo mais sofisticados que seus correlatos brasileiros, uma vez que contavam com a presença de ilustres autores anglófonos e até com a publicação de raras antologias bilíngues nas quais alguns autores brasileiros lograram estampar trabalhos. Essa convivência exigiu a criação do termo “ficção lusófona” para se referir aos trabalhos de fc&f em língua portuguesa, não importando a nacionalidade do autor. Hoje, essa convivência já não é tão próxima quanto foi nos anos 1990, mas ainda se observa em algumas antologias nacionais recentes.
De forma geral, a relação só trouxe benefícios para a ficção científica no Brasil, uma vez que os autores portugueses demonstram habilidade e sensibilidade superiores em relação ao trato da língua e do gênero, sendo bons exemplos de criatividade e técnica.
Entre os autores lusitanos que desenvolveram uma relação mais íntima com o fandom brasileiro está João Manuel Barreiros, que teve diversos trabalhos aqui publicados, em fanzines como o Somnium, Megalon e Scarium, alguns deles premiados. Por isso tudo, é surpreendente que tenha demorado tanto tempo para que um editor brasileiro percebesse o valor do texto de Barreiros.
A bondade dos estranhos está com toda a certeza entre os melhores textos de fc já publicados no Brasil, com altas doses de ação, aventura, emoção e maravilhamento, sem esquecer do estilo arrojado característico do autor. O romance foi publicado em Portugal em 2007 pela Escritório Editora e promete ser o primeiro volume de uma trilogia.
A narrativa é voluptuosa e sensual, repleta de um fremir ansioso por mais e mais, numa orgia de violência e escatologia. Mas não há sexo em A bondade dos estranhos. O apelo é muito mais básico: a fome e a gula.
Num futuro em que a Terra foi definitivamente colonizada por diversas raças alienígenas, vive Joana Mendes, uma adolescente que, quando criança, foi selecionada para participar do projeto experimental Candy-Man, que lhe legou uma habilidade empática especial, mas deixou sequelas psicológicas graves. Os danos causados pelo despertar das habilidades de Joana são usados como instrumento de chantagem para convencê-la a cuidar, durante 24 horas, dos filhotes de um dos mais altos dignitários de uma das raças alienígenas que agora dominam o planeta. A tarefa seria fácil, não fossem eles de uma espécie predadora cuja agressividade se manifesta mais abertamente durante a juventude.
O cenário desse futuro também não é dos mais alvissareiros. A Terra está dividida entre três raças alienígenas invasoras que são concorrentes entre si: os angsts e os spleens, ambos absolutamente misteriosos para a percepção humana; e os spiertvick’kaps, um tipo de escorpião gigante, também chamados de helloweens por causa de sua cabeça em forma de abóbora. Apesar das evidentes diferenças físicas e culturais, é a raça alienígena mais identificada com a percepção e psicologia humanas. A presença dessas raças no planeta causa inúmeras e imprevisíveis alterações no ecossistema e na biologia terrestres, suas genéticas interagindo com animais e plantas nativos, transformando o planeta num ambiente em efervescente mutação.
Para não ser ainda mais responsabilizada pela misteriosa tragédia que aconteceu quando do despertar de suas habilidades, Joana aceita o “convite” da embaixadora spiertvick’kap Vielmina Spratzt, que vai ausentar-se para uma conferência e precisa que alguém tome conta de sua ninhada de nada menos que 500 filhotes. Joana vai contar com a orientação e supervisão de Mr. Jeeves, um mordomo robô tão formal quanto rigoroso. Para ele, a jovem humana nada mais é que um grande aborrecimento.
Joana tem que usar toda a sua capacidade empática para se impor frente aos vorazes filhotes, o que por si já não é tarefa fácil. Mas não é tão simples assim. No processo, Joana descobre que nos bastidores da propriedade de Vielmina Prazt prospera algum tipo de conspiração, cuja necessidade é que ela não saia de lá viva, mas Joana está resoluta a não colaborar com o esquema.
O romance tem características cyberpunks óbvias, mas também apresenta contornos New Weird, sendo exemplo bem acabado do que há de mais moderno na ficção científica internacional, um caldo de informações tão abundante e rico que o leitor brasileiro, acostumado a dietas mais leves, pode ficar perturbado.
Não é por acaso. João Barreiros é um especialista em fc, dono de uma biblioteca invejável que parece ter lido integralmente. Além de escritor, é tradutor, editor e crítico, formado em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Ganhou dois Prêmios Nova e é autor de alguns dos mais festejados romances de fc em língua portuguesa, como Disney no céu entre os Dumbos (E-nigma Pro, 2001), A verdadeira invasão dos marcianos (Presença, 2004), e o volumoso Terrarium: Um romance em mosaicos (Caminho, 1996), em parceria com o escritor português Luís Filipe Silva. Também publicou as coletâneas O caçador de brinquedos e outras histórias (Caminho, 1994), Duas fábulas tecnocráticas (do autor, 1997) e Se acordar antes de morrer (Gailivro, 2010).
Por tudo isso, A bondade dos estranhos é leitura obrigatória a todos aqueles que querem ter uma verdadeira experiência literária gnóstica e gastronômica. Se é que você me entende.
Cesar Silva

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