quinta-feira, 12 de março de 2015

Além do deserto, Érica Bombardi

Além do deserto, Érica Bombardi. 272 páginas. Capa de Vitor Gorino. Edição da autora, Campinas, 2012.

Em junho de 2009, recebi de Érica Bombardi, que então era apenas uma colega de uma lista de discussão literária, um pedido incomum: se eu poderia ler o romance de fantasia que ela havia escrito e fazer observações a respeito para que ela o aperfeiçoasse. Como já havia feito isso para outros autores amigos, aceitei. Logo recebi pelo correio um calhamaço com o manuscrito de um romance chamado Fatum, título que eu confesso não ter gostado muito – e o disse logo para a autora. Tomei o original e, com um lápis à mão, fui lendo, assinalando e escrevendo meus comentários nas laterais das páginas e em emails que trocávamos periodicamente. Algumas semanas depois, devolvi o manuscrito a autora com um longo comentário final. Na época, Érica trabalhava numa editora e eu imaginei que o livro dela seria publicado pela mesma, por isso foi uma surpresa quando vi o nome dela na relação dos selecionado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – Proac 2011, com um texto que tinha justamente o nome do primeiro capítulo de Fatum. "Deve ser o próprio", pensei. E era mesmo. Foi uma sensação agradável ver um texto que eu criticara recebendo o financiamento de um concorrido programa cultural. Mais uma vez, pensei comigo mesmo: "agora ela vai achar fácil uma boa editora para publicar o livro". Mas Érica tinha outros planos.
Além do Deserto foi publicado pela própria autora, que fundou uma empresa especialmente para fazê-lo. Com a experiência que havia adquirido em anos de trabalho na editora, Érica queria colocar em prática sua própria política editorial. Em poucos meses, o volume estava pronto, sendo que foi o primeiro livro de 2012 que me chegou às mãos.
Além do Deserto é o início de Fatum, série de alta fantasia sobre um mundo compartilhado por homens e seres mágicos. Neste primeiro romance, o mundo de Fatum está agonizante, arrazado pela guerra entre os homens e as fadas. Tornado num extenso deserto, os sobreviventes desse mundo outrora belo e vigoroso agora habitam os últimos oásis, em torno dos quais ergueram pequenas cidades muradas que também estão em um lento processo de esgotamento. A guerra acabou, mas o sangue dos mortos ainda recobre vastas regiões e demônios poderosos empreendem ataques às cidades, causando muitas baixas.
Mas algo não parece certo nessa tragédia planetária. A guerra foi brutal e efetiva demais. As Sombras, um grande mal desconhecido, é o verdadeiro responsável por toda a destruição e ainda se esconde, a espera do momento certo para o golpe final. Contra ele, só uma pessoa pode ter chance, Thera, uma jovem revoltada que não se interessa pelo destino de Fatum e só se pensa em achar o irmãozinho perdido. Mas ela será levada a agir por um  improvável grupo de humanos e fadas, que acreditam ser ainda possível salvar o seu mundo. Na busca por revelação e esperança, eles são peões nos jogo do maléfico inimigo oculto, que vai manipular os heróis para garantir sua vitória final, que a cada momento parece mais e mais inevitável.
A guerra entre homens e seres mágicos é recorrente nos textos de autores-fãs que, cegos pelo brilho de suas obras de culto, não se abrem para melhores possibilidades criativas. Mas o tema já rendeu histórias surpreendentes nas mãos de profissionais como Bruce Sterling, Glen Cook e João Manuel Barreiros. Érica também encontrou aqui um viés diferenciado e conseguiu construir uma narrativa inusitada que, na maior parte do tempo, escapa das convenções do gênero, embora eventualmente deslise para o usual, o que é natural num trabalho de estreia. Mas o romance revela uma rica palheta de ideias interessantes a serem exploradas, uma fauna variada de animais exóticos e entidades mágicas, uma história milenar a ser resgatada, além de vilões deliciosamente detestáveis, como devem ser em toda boa história de fadas.
O financiamento do Proac não veio por acidente, foi mérito da autora e depõe ao seu favor. A seriedade e o carinho com que Érica tratou a criação e publicação do livro, impresso em papel reciclado e uma linda ilustração nas capas internas, também merece o respeito dos leitores, que podem esperar por mais nos futuros trabalhos da autora, que certamente virão.
— Cesar Silva

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