segunda-feira, 23 de março de 2015

Geração Subzero

Geração Subzero: 20 autores congelados pela crítica mas adorados pelos leitores, Felipe Pena, org. 320 páginas. Capa de Diana Cordeiro. Editora Record, Rio de Janeiro, 2012.

Geração Subzero foi certamente o livro de ficção fantástica brasileira mais comentado em 2012. Desde muito antes de seu lançamento, já era assunto nas redes sociais e, quando do lançamento, rapidamente ganhou resenhas em publicações importantes que a ficção de gênero raramente atinge.
Toda essa atenção foi fruto das inteligentes provocações implícitas em seu título, que faz referência explícita à prestigiosa antologia mainstream Geração Zero Zero: Fricções em rede (2011, Língua Geral), organizada por Nelson de Oliveira, e também porque exagera nas tintas de um suposto confronto entre os autores de gênero e a crítica literária.
O tom provocativo continua forte na longa introdução do volume, assinada pelo organizador, Felipe Pena, que é jornalista, escritor, professor e doutor em Literatura pela PUC, com pós-doutorado pela Universidade de Paris. Um currículo acima de qualquer suspeita, portanto. Essa introdução revela alguns dos objetivos de Pena quanto ao público que ele busca para o livro. O discurso soa como uma pregação, não para os convertidos, mas para o público leigo e, especialmente, para os intelectuais das letras. Isso fica claro porque Pena retoma assuntos superados há anos no fandom, como se os autores de fc&f ainda estivessem preocupados com as antipatias do mainstream tanto quanto já o foram no passado. Até mesmo um manifesto faz parte dessa apresentação, o "Manifesto Silvestre", que propõe elevar o entretenimento à categoria de arte. O conflito entre a literatura de gênero e o mainstream realmente foi pauta entre os autores-fãs há vinte anos, mas a própria evolução do mercado editorial tratou de reduzi-la à devida estatura.
Mas é na leitura dos contos que se percebe a seriedade do trabalho de Pena. A antologia publica vinte contos, cujos critérios de seleção foram bastante científicos, como é de se esperar de um doutor em literatura. Nada do "gostei- não-gostei" e dos bairrismos comuns nesse tipo de dinâmica. Pena não é um iniciado nos corredores do fandom e conseguiu escapar muito bem deles. Seus critérios, que partiram principalmente da presença dos autores nos ambientes frequentados pelos leitores de gênero e a receptividade que cada um dele goza dentro dessas comunidades, conseguiram ser bastante precisos quanto ao instantâneo do estado da arte da ficção de gênero praticada hoje no Brasil. Não é um portfólio para inglês ver, nem uma antologia revolucionária. É um retrato, um recorte como gostam de dizer os acadêmicos, do panorama médio da fc&f nacional neste início de século.
Um antologista geralmente busca a excelência, reunir num único volume os melhores textos de uma escola ou de um gênero. Mas Pena não estava interessado nisso. Então, o livro passeia por vários gêneros, indo do mistério à ficção científica, reunindo autores de vários estilos e competências.
Não vou abordar conto a conto porque isso tornaria a leitura enfadonha, mas alguns deles merecem ser comentados.
A primeira metade da antologia é mediana, mas salta aos olhos o conto "O índio do abismo sou eu", de Luiz Bras, heterônimo do experiente escritor Nelson de Oliveira acima citado que, dessa forma, subscreve a proposta de Pena. Bras tem desenvolvido sua carreira exclusivamente no gênero da ficção científica, abordando temas atuais com um estilo maduro e consistente, qualidades presentes também neste texto que conta a história de uma mulher que sofre de uma doença terminal incurável. Congelada até a cura ser descoberta, quando volta a consciência, muito anos no futuro, ela é sequestrada por um grupo de ativistas políticos que pretende retirar dela todos os órgãos para suprir transplantes em pessoas carentes. A narrativa salta continuamente entre o tempo objetivo natural e um tempo subjetivo virtual, que acontece apenas na mente da protagonista.
A segunda parte da antologia sobe bastante de qualidade, principalmente a partir de "Entrevista com o saci", de Martha Argel, autora da segunda geração da ficção científica brasileira, nos anos 1990, que depois enveredou pela literatura de horror, na qual obteve sucesso e reconhecimento. Martha é cientista, doutora em ornitologia, com muitos trabalhos acadêmicos publicados, além de diversos romances e coletâneas de horror. O conto, cujo título homenageia a escritora americana Anne Rice, fala sobre uma psicóloga de um asilo que conhece um velhinho solitário cheio de histórias revoltantes para contar.
Janda Montenegro é uma jovem autora carioca, formada em Letras pela UFRJ, que também tem alguns livros publicados. Sua contribuição para a antologia foi "Outras onomatopéias", conto absurdista situado nas franjas da ficção fantástica. A história, rápida e pungente, conta o drama improvável que um escriturário medíocre passa ao ser abordado por uma estranha "blitz" nas ruas do Rio de Janeiro. O final esconte uma piadinha, mas ela é tão cruel que evoca tons de humor muito obscuros.
Delfim, que além de escritor é editor e jornalista especializado em quadrinhos, assina "O escritório de design publicitário", um conto na linha absurdista de Murilo Rubião, que fala a respeito de um jovem que vê sua vida irremediavelmente comprometida por causa de seu estranho emprego novo.
"A lua é uma flor sem pétalas", de Cirilo Lemos, autor do romance O alienado, é um conto de ficção científica cyberpunk que, com muita ação e violência, conta uma história de guerra entre gangues de uma superfavela futurista.
Além dos autores já citados, o livro também apresenta textos de André Vianco, Eduardo Sphor, Thalita Rebouças, Carolina Munhóz, Eric Novello, Raphael Draccon, Ana Cristina Rodrigues, Juva Batella, Estevão Ribeiro, Pedro Drummond, Luis Eduardo Matta, Sérgio Pereira Couto, Julio Rocha, Helena Gomes e Vera Carvalho Assumpção, alguns deles verdadeiros pesos pesados da literatura de gênero, que, não raro, figuram nas listas dos mais vendidos. Muitos deles são experientes na literatura de gênero, especialmente no campo infanto-juvenil, aos quais o organizador também gosta de definir com a máxima “Escrever fácil é muito difícil”. Certamente que cada um deles têm, em seus repértórios, contos bem superiores aos vistos nesta antologia, mas como já foi comentado aqui, não era esse o objetivo do organizador. Cabe também lembrar que todos os autores cederam os direitos de seus contos em favor da ONG Ler é Dez, Leia Favela.
Contudo, Geração Subzero ainda esconde uma última pérola. Trata-se do conto "A invenção do cânone", do próprio Felipe Pena, publicado no corpo da apresentação do livro como uma espécie de ilustração. Trata-se de uma ficção absurdista que mostra o diálogo entre um casal de intelectuais numa casa de chás em Paris. Divertidíssimo e repleto de significados.
Geração Subzero poderia ser melhor, é claro. Mas não é esse o mérito do trabalho de Pena. A partir de um olhar suficientemente distanciado e amplo, Pena consegui apresentar um panorama realista das virtudes e pecados da ficção de gênero praticada no Brasil. Para o bem ou para o mal, é o que somos. E contra isso não há como argumentar.
— Cesar Silva

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