sábado, 14 de março de 2015

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 136 páginas. Texto da orelha de Mário da Silva Brito. Lançado originalmente em 1972.

Numa pequena cidade do interior do Brasil, como milhares delas, aliás, as pessoas vivem suas vidas dentro de uma estável e confortadora rotina. Até que o parente de uma das famílias chega com pompa e cerimônia com suas belas roupas e um carrão anunciando as modernidades da cidade grande. Cercado de mimos e interesses traz a novidade: a chegada da Companhia. Mas o que é a Companhia?
     Está montado o cenário deste romance perturbador que à maneira peculiar do autor, através do talento recorrente pela fluência narrativa e à sensível construção de tipos humanos, nos insere no terror da opressão e do incompreensível.
     Sim, Sombra de Reis Barbudos foi escrito no auge da ditadura militar brasileira e não é possível que nos furtemos a interpretá-lo como uma extrapolação crítica deste período histórico sombrio. Assim como em outras de suas obras, mais notavelmente em A Hora dos Ruminantes (1966), o realismo extremo da opressão política-econômica escapa, por assim dizer, para o terreno do bizarro e do absurdo.
     A Companhia muda de forma radical a vida das pessoas da cidadezinha. Quase todos trabalham para ela, direta ou indiretamente. Elas têm de seguir suas regras e regulamentos que, pela presença onipresente de fiscais, passa a ter força de lei. Começam as proibições pelo consumo, depois pelas opiniões, e por fim nos costumes e no comportamento individual. Ou seja: estabelece-se um contexto de controle quase absoluto na vida de cada pessoa.
     Para dificultar a comunicação e a mobilidade, a Companhia cerca as ruas e casas de muros, para tempos depois cercar toda a cidade. A cada construção opressiva há uma insólita “resposta” dos céus. Aos muros surgem urubus aos milhares; às cercas surgem pessoas voando. Em princípio sem saber de onde, e depois com gente da própria cidade ganhando os céus. Sem dúvida temos no primeiro caso, uma anunciação de tempos tenebrosos, e no segundo caso um desejo desesperado por liberdade.
     A narrativa se concentra na família de tio Baltazar, o figurão que anuncia a chegada da Companhia. Seu Horário, cunhado do recém-chegado adere à Companhia, lá prospera, mas depois se demite e é “sumido” em desgraça. Mesmo Baltazar depois de ser um dos líderes da Companhia, é levado embora da cidade e adoece gravemente. Ao que parece o cerco à família de Lucas, o menino que conta a história, é um micro-cosmo do que acontece com a cidade inteira sob o julgo das regras e normas da Companhia.
     Numa tentativa de respondermos o que é esta instituição que controla de forma opressiva a vida das pessoas podemos nos indagar: onde está o Estado nesta cidade que permite que uma empresa (ou melhor, uma organização), assuma o controle de tudo, até de funções públicas? Neste caso como ficariam as leis e as ligações externas da cidade com o restante do país? Embora possa parecer algo incoerente, até mesmo neste plano é possível compreendermos a Companhia como uma destas mega-empresas que assumem as atividades econômicas de tal forma que toda a sociedade gira em torno dela, capturando, inclusive, o poder público. Historicamente existiram muitos destes enclaves estrangeiros no Brasil e, principalmente, na América Latina.
     Por outro lado é possível também uma leitura mais política, do ponto de vista metafórico: a Companhia nada mais é que a instauração de uma nova ordem: a ditadura, seja ela militar ou civil. Neste plano a crítica de Veiga seria ao regime autoritário, então em vigência no Brasil.
     Com sua habitual sensibilidade Veiga trabalha a opressão nos pequenos espaços, nas individualidades e não no plano macro. Por isso a interpretação das causas e efeitos da nova ordem é esmiuçada no interior da família de Lucas. Para criticar uma nova ordem sócio-política de caráter autocrático, Veiga mostra o terror causado no plano individual e subjetivo básico das pessoas: a incompreensão, o medo, a desconfiança e a solidão. Por outro lado resvala ao fantástico ao mostrar que o terror do realismo e do controle extremo meio que vaza para o terreno do inexplicável. Talvez porque uma situação de opressão total seja em si mesma uma aberração difícil de suportar.
     Seriam os tais reis barbudos vislumbrados durante e no fim do livro os donos da Companhia? Nada se explica porque não há explicações possíveis quando as pessoas são arbitrariamente oprimidas e caladas. Como afirma o cientista político Guillermo O´Donnell, ao comentar sobre o clima de terror que viveu durante a ditadura militar argentina nos anos 1970, talvez tão apavorante quanto a violência física é a capacidade das ditaduras de estabelecer o medo absoluto que nos leva ao silêncio. De boca fechada correríamos menos riscos, pois não exteriorizaríamos verbalmente às pessoas ou ao mundo o que pensamos. Mas de outra parte esta interiorização forçada de sentimentos nos humilharia porque não expressaríamos muito do que nos torna humanos. Esta dimensão está presente em Sombra de Reis Barbudos, embora a válvula de escape, se assim posso colocar, se insere na dimensão do fantástico: dos urubus, da chuva incessante, do mágico que todos viram mas ninguém lembra e, acima de tudo, pelas pessoas que voam. Uma eloquente imagem do desejo visceral de liberdade.
     Este romance dialoga e critica os tempos sinistros que vigoraram na história brasileira, mas não está datado porque se presta a múltiplas leituras interpretativas. Na mais óbvia para nos alertar sobre os horrores sempre possíveis da volta de uma opressão política; em outra, digamos mais contemporânea, sobre as eventuais armadilhas de uma sociedade que, embora pluralmente aberta, está excessivamente voltada a uma esfera individual de interesses  podendo, com isso, gerar posturas intolerantes e desejos de ordem, voltando-se contra ela mesma. Por tudo isso, além do encanto inegável de sua prosa e suas imagens surpreendentes, é que Veiga, o grande fantasista brasileiro, possui um alcance universal.
Marcello Simão Branco

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