sexta-feira, 15 de maio de 2015

Xenocídio, Orson Scott Card

Xenocídio (Xenocide), Orson Scott Card. 536 páginas. Tradução de Sylvio Monteiro Deutsch. Capa: Vagner Vargas. Coleção Pulsar, Devir Livraria, São Paulo, 2010.

Orson Scott Card está entre os autores estrangeiros mais bem relacionados com o fandom brasileiro de ficção científica, o que é uma grande sorte nossa. Card morou no Brasil durante algum tempo nos anos 1970, como missionário, aprendeu a falar o português com desenvoltura e nutre pelo Brasil um carinho especial. Mesmo depois de sua temporada missionária, ele voltou pelo menos duas vezes ao Brasil, numa delas tivemos a oportunidade de compartilhar sua companhia num encontro de autores e editores em Sumaré*, no interior do Estado de São Paulo.
O autor promoveu então o lançamento de um de seus livros no país, mais exatamente o clássico O jogo do exterminador (Ender's game), publicado em 1990 pela editora Aleph inaugurando a coleção Zenith. Logo também seria publicada a sua sequência, O orador dos mortos (Speaker for the dead, 1990), pela mesma editora. Ambos os romances realizaram o feito de ganhar, por dois anos consecutivos, os mais importantes prêmios da fc mundial, o Hugo (1985 e 1986) e o Nebula (1986 e 1987), sendo o Card o único autor a realizar esse feito.
De Card também foram traduzidos, ainda nos anos 1990, os romances Um planeta chamado Traição (Treason, Record, 1993), A odisseia de Worthing (The Worthing saga, Record, 1994) e a novelização O segredo do abismo (The abyss, Record, 1989), além de diversos contos em revistas e antologias, entre eles o conto que deu origem ao romance O jogo do exterminador, também ganhador do Hugo, publicado pela revista Issac Asimov Magazine. Card ainda colaborou, por muitos anos, com diversos fanzines brasileiros. Contudo, a partir dos anos 1990 o autor ausentou-se do cenário editorial brasileiro, com raríssimas aparições. Até que a editora Devir Livraria decidiu republicar o clássico O jogo do exterminador, em 2006, o que, a princípio, não considerei uma boa ideia. O mercado literário de fc no Brasil estava em baixa e, na minha visão, um livro que havia sido anteriormente publicado em grande tiragem, ainda que estivesse esgotado, poderia não ter uma boa receptividade. Acreditava que, caso a Devir sofresse um revés logo de saída (o título inaugurou sua Coleção Pulsar), poderia não ter interesse de seguir adiante. Estava ainda bem viva na minha memória as críticas dos leitores quando a então editora PECAS (depois batizada Ano-Luz) decidiu publicar, em 1998, o romance Tropas estelares (Starship troopers), de Robert Heinlein que, apesar de inédito no Brasil, tinha uma antiga edição portuguesa, dos anos 1960.
Para sorte de todos, queimei minha língua e a Devir não só republicou em 2007 o segundo volume da saga, O orador dos mortos, mas finalmente, em 2010, traduziu a terceira parte da saga, inédita em língua portuguesa, Xenocídio, um romance aguardado com expectativa desde a publicação de O orador dos mortos em 1990.
Os vinte anos de espera foram longos, mas amplamente recompensados pela excelente edição da Devir, com a ótima tradução de Sylvio Monteiro Deutsch e a bela capa de Vargner Vargas.
Quem leu os primeiros livros sabe que Ender Wiggins, quando criança e sem que ele soubesse, foi treinado exaustivamente numa escola militar para ser usado como o estrategista de uma guerra de extermínio contra uma civilização alienígena, os abelhudos, um tipo de inseto inteligente e de hábitos gregários, que vive em colmeias.
O segundo volume conta o que aconteceu com Ender depois que a guerra acabou. Vagando pela galáxia em velocidades acima da luz, Ender assumiu a tarefa de orador dos mortos e, por isso, teve sua vida relativisticamente estendida. Enquanto a raça humana se espalhava pelo universo em dois mil anos de história, Ender não envelheceu mais do que quarenta anos. Em suas andanças, ele chega ao planeta Lusitânia, onde uma colônia científica formada por brasileiros encontrou uma raça inteligente de seres que são um curioso caso de interação entre animal e planta.
Xenocídio retoma a história da colônia em Lusitânia, onde os cientistas brasileiros tentam encontrar uma cura definitiva para o descolada, vírus nativo do planeta cuja letalidade é tamanha que ninguém que uma vez lá tenha pousado pode sair. Ender constitui família com uma das brasileiras do colônia e, secretamente, estabelece uma colmeia dos abelhudos a partir de um ovo de rainha que ele guardou cuidadosamente ao longo dos anos em que vagou pela galáxia.
As notícias sobre a virulência do descolada assustaram o corrupto Congresso Estelar, que decidiu enviar à Lusitânia uma frota de extermínio armada com o Doutorzinho, uma bomba destruidora de planetas, e garantir de uma vez por todas que a doença nunca saia de Lusitânia. A única forma de evitar que um novo xenocídio tenha lugar é encontrar a cura do descolada e, para ganhar tempo, Ender pede a Jane, uma inteligência artificial que o acompanha há tempos, para interromper todas as comunicações com a frota de extermínio.
Enquanto isso, no planeta Caminho, colonizado por chineses, Han Qing-jao, uma garotinha dotada de uma enorme inteligência é encarregada pelo Congresso de descobrir como e por quê a frota de extermínio desapareceu dos radares, e sua investigação, associada à relação conturbada com seu pai, ambos vítimas de um violento transtorno obsessivo compulsivo, assim como de ambos com a pajem Si Wang-Mu e Jane – a inteligência artificial de Ender – serão a chave da libertação de dois planetas e das três únicas raças alienígenas inteligentes conhecidas. Ou, quem sabe, quatro.
Um dos grande trunfos de Card, contudo, não é de sua lavra. Trata-se do ansível, um aparelho de comunicação subespacial primeiramente citado pela escritora americana Ursula LeGuin, que permite a comunicação instantânea com qualquer ponto da galáxia, independente de sua distância. É o ansível que dá sustentação a toda trama da saga de Ender, que ganha relevos cosmológicos a partir de Xenocídio. E essa discussão cosmológica é um dos grandes méritos do romance, que constrói uma intrincada teoria digna das mais elaboradas hardfictions, com desdobramentos em várias perspectivas, especialmente religiosas. O romance também traz outra grande discussão sobre bioética e ecologia, numa profundidade que só encontra paralelo nos romances da série Duna, de Frank Herbert.
Card é um autor que não evita temas polêmicos e não extirpa a face religiosa de sua ficção, o que desagrada uma ampla parcela de leitores mais afeitos à ficção científica de ação e entretenimento. Não que Card não tenha habilidade para tal. Tanto tem que Xenocídio apresenta vários momentos de ação e violência intensa, mas os melhores momentos da trama são filosóficos, na forma de diálogos tensos entre os muitos protagonistas deste que é, sem dúvida, um dos melhores romances de ficção científica publicado no Brasil em muitos anos. O fato dele não ter repetido o desempenho de suas prequelas no que diz respeito aos prêmios, embora tenha sido indicado para o Hugo e para o Locus, não representa uma queda de qualidade, muito pelo contrário. Todas as discussões travadas no romance são intensas e bem articuladas, e sua riqueza é muito bem explorada pelo autor.
A Devir Livraria publicou, em 2013, o romance Filhos da mente (Children of the mind), quarto e último romance do primeiro arco de histórias, e abre a possibilidade de que, no futuro, além da série completa de Ender – que tem mais quatro romances e uma coletânea –, possamos receber outras bem sucedidas séries que Card publicou nos EUA, como Homecoming e Tales of Alvin Maker, assim como mais de sua ficção curta que é de extrema qualidade.
— Cesar Silva

* Trata-se da I InteriorCon, acontecida em 1990.

Nenhum comentário:

Postar um comentário