terça-feira, 16 de junho de 2015

O Rasgão no Real, Braulio Tavares

O Rasgão no Real – Metalinguagem e Simulacros na Narrativa de Ficção Científica, Braulio Tavares. Editora Marca de Fantasia – Coleção “Quiosque” n. 14, João Pessoa (PB), 75 páginas, 2005.

Este livro chega depois de quase duas décadas do primeiro de não-ficção do autor: O Que é Ficção Científica, publicado pela editora Brasiliense em 1986. Era uma introdução aos principais conceitos da ficção científica e ainda hoje pode ser lido com interesse. Já este O rasgão no real elabora questões mais complexas, pois é uma obra escrita para iniciados, embora possa ser lido sem susto por um leigo interessado.
Neste trabalho, o autor aborda várias questões relativas ao conceito de ‘realidade’, tal como vem sendo pesquisado pela ciência e exercitado tanto na literatura em geral como especialmente no gênero ficção científica. A primeira questão enfrentada no livro, contudo, é essencialmente pertencente ao campo das artes, a metalinguagem, como uma espécie de nova tradição literária, consequência da ruptura com o realismo, realizada pelo modernismo e posteriormente pelo pós-modernismo.
Dos romances realistas vitorianos do século XIX, no qual o narrador é quase sempre onisciente e o leitor tem uma sensação quase viva de que a história tem um plano de realidade próprio, as tendências literárias – especialmente a partir de meados do século XX – passam a refletir sobre o seu próprio objeto de experimentação criativo, o romance e demais formas da prosa, no qual o autor questiona cada vez mais o sentido da realidade da narrativa e dialoga com o leitor de forma explícita, estabelecendo com ele uma quebra no distanciamento onisciente. Ao deixar claro que a história em si é uma fraude, porque é uma ficção, coisa inventada. Assim, também as próprias convenções da arte da escrita literária são posta em discussão, numa mudança radical do período realista.
Tavares aponta com correção que a maioria dos romances de ficção científica se passam em um plano de construção realista, mais conservador do ponto de vista da técnica narrativa. Isso soa um pouco estranho, pois mesmo aquelas histórias de enredos grandiosos, fantásticos e sense of wonder tem esta, ‘carpintaria’, para usar uma expressão do crítico, mais convencional. Isso em nada desmerece o gênero como tal e é até possível defender que a ficção científica em geral fique melhor apoiada neste tipo de técnica narrativa, pois trabalha dentro de uma concepção racional de explicação de um elemento extrapolativo, especulativo, que ainda não existe. Ou seja, a ideia da ‘literatura de ideias’, que se passa prioritariamente no nível do enredo.
Claro que não há impedimentos para uma ficção científica metalinguística, que até gire em torno de si mesma, seus conceitos e tradições históricas autorreferentes. Há obras deste tipo, embora não numa quantidade expressiva, como há (ou houve em certo momento) dentro da literatura mainstream, no qual o próprio enredo passou a ser um elemento subisidiário ou até dispensável, dentro desta linhagem estilística.
Ainda assim, é fato de que a grande mudança de estilo e de enredos dentro da literatura de ficção científica ocorreu nos anos 60, com o surgimento da New Wave. Não só as ciencias sociais se estabeleceram como assuntos relevantes de especulação dentro do gênero, mas também a forma como estes novos temas foram abordados, ou seja, por meio de um salto de qualidade no estilo, na forma como as histórias eram estruturadas e contadas. E nisso, o gênero pode ter perdido – a exemplo da literatura mainstream – um pouco do seu frescor, ou de sua ingenuidade digamos, cognitiva-realista.
Desta discussão sobre a inserção metalinguística na Arte, e em especial na literatura, Tavares expande o campo de interpretação das diferentes noções de construção da realidade, por meio da análise do conceito de mídia ambiente (media landscape). De que forma a onipresença diária dos mais diferentes meios de comunicação interfere em nossos sentidos e consciência sobre o que somos, onde estamos e para onde (possivelmente) vamos.
Mais especificamente, mídias como cinema, rádio, televisão, publicidade, jornal, revista, moda, internet, telefone, celular, webcan, videoconferência etc etc. O mundo está fisicamente integrado por causa do desenvolvimento tecnológico e está também interagido de forma on-line, como se tudo acontecesse ao mesmo tempo agora. Mas sempre recortado e interpretado por fontes diferentes, que transmitem mensagens e visões não necessariamente homogêneas de um mesmo fenômeno ou conjunto deles. E aqui a ideologia, como forma de construção de modelos sociais e falseamento do mundo como ele é, continua a cumprir um papel relevante e potencialmente subversivo.
Tavares situa com precisão como a mídia ambiente é trabalhada no contexto da ficção científica: “As histórias que abordam a Mídia Ambiente não utilizam nenhum dos clichês tecnológicos atrelados à ficção científica (robô, espaçonave, supercomputador, máquina do tempo), mas seu espaço temático é tecnológico e humanístico por igual. São histórias que examinam o impacto social das novas tecnologias de comunicação, informação e controle.” (página 35).
 O ponto seguinte é a conexão possível entre esta onipresença midiática e a criação de mundos artificiais, realidades virtuais, ou seja, o mundo do simulacro, aquele derivado de uma criação eletrônica, à nossa imagem e semelhança. Aqui o principal elemento de análise recai em algumas obras de Philip K. Dick (1928-1982), escritor central no tema do questionamento sobre o que é ou não Real.
Da análise de obras de Dick, como O Homem mais Importante do Mundo (Time out of Joint) e de outros autores como o Simulacron 3, de Daniel F. Galouye e filmes como O Show de Truman e Matrix, o livro parte para o próximo capítulo: “O véu de Maya: o mundo não existe!”. Aqui a discussão vai – literalmente – longe, ao refletir sobre de que maneiras os conceitos da física quântica têm alterado a maneira humana de compreender a realidade e sua inserção nela. O fato é que não existe nada que seja absoluto, mas mesmo este relativismo não é suficiente para dar conta de explicações satisfatórias, pois cada ângulo de observação é limitado por si mesmo e – o principal –, interfere na estrutura da realidade no ato mesmo em que há uma observação (uma intervenção). Grosso modo, o tal ‘princípio da incerteza’ de Heinzenberg, no qual observador e observado interagem um com o outro e alteram mesmo a disposição e condição de cada um no fenômeno físico.
Como se percebe este capítulo, em particular é complexo e ao mesmo tempo fascinante. Mas, caro leitor – ei, olhe uma interferência metalinguística nesta resenha! –, não ache que são assuntos complicados demais, pois o autor tem um ótimo poder de síntese e clareza na exposição de ideias e conceitos artísticos ou científicos, como neste último caso.
E esta virtude é especialmente saborosa para os leitores de ficção científica, porque o foco do livro é de que forma estas questões candentes e inconclusas são trabalhadas pela literatura de ficção científica. Aqui no caso da discussão da física quântica, Tavares a comenta do ponto de vista das obras do autor australiano Greg Egan, em romances como Quarantine e Distress, numa espécie de cosmologia subjetiva, ou uma aproximação instigante entre a cosmologia e a metafísica, uma das tendências últimas do gênero. Pois, para o autor: “À medida que as especulações da física teórica vão se tornando mais fantásticas, a ficção científica hard sente-se autorizada a conceber os cenários mais delirantes, inclusive os que implicam na metalinguagem terminal de questionar a própria realidade do mundo habitado pelo leitor.” (página 53).

Além desta questão fascinante e perturbadora, Tavares explora nos dois últimos capítulos a ‘excessiva’ realidade posta em prática pela parafernália tecnológica desenvolvida, especialmente no cinema, fazendo com que o que é visto nas telas seja mais real do que a própria realidade, uma espécie de anti-clímax.  E o último tópico relaciona-se com a chamada ‘ficção catalográfica’, “em que a descrição minuciosa de ambientes, personagens, indumentárias, cidades, acidentes geográficos, armas, utensílios, animais, entes sobrenaturais, feitiços, e encantamentos etc, precede e determina (as vezes até dispensa) a criação das histórias propriamente ditas.” (página 68). Exemplos como os chamados universos compartilhados, séries de televisão e mesmo os jogos interativos, como os role playing games (RPG), todos cada vez mais comuns e presentes, seja na FC&F literária ou audiovisual.
Mesmo assim o livro não trata de todas as possíveis maneiras de interpretar a realidade (ou as realidades). Cenários e temas como os de alteração de nossa percepção por universos paralelos e realidades alternativas, ação de um superinteligência alienígena ou de uma forma de vida insuspeita, e- feitos ‘paranormais’, sonhos e pesadelos, ingestão de drogas e distúrbios mentais – entrando aqui na discussão adjacente sobre o que é ‘normal’. Todos estes outros temas muito presentes e com destaque dentro da ficção científica e fantasia.[1]
 Mas Tavares demarca bem o campo de sua análise, mais voltado para o entendimento da realidade dentro de criações artificiais (metalinguagem, mídia ambiente, física quântica, catalografia), engendradas direta ou indiretamente pela ação humana. E de como o ser humano lida com estas outras realidades e seus paradoxos consequentes.
Cabe também ponderar como os brasileiros lidam com os temas tratados no livro. Sim, porque Tavares usa exemplos apenas da ficção científica internacional. É uma opção metodológica legítima, mas uma abordagem que incluísse também a ficção científica brasileira ajudaria a ampliar o leque, tanto temático, como de uma possível contribuição específica, um jeito brasileiro de abordar o que é ou não real. Os autores brasileiros que já escreveram histórias metalinguísticas e com diferentes concepções de realidade são, entre outros, André Carneiro, Carlos Orsi Martinho, Fábio Fernandes, Ivan Carlos Regina, Jorge Luiz Calife, Lúcio Manfredi e Roberto de Sousa Causo.
 Em suma, um livrinho pequeno no tamanho e grande no conteúdo. Trata de assuntos intricados de maneira didática e com bons exemplos complementares, tornando a leitura agradável e difícil de ser largada até o final. Mais uma contribuição preciosa do autor ao rarefeito campo da crítica e referencia sobre ficção científica no Brasil.

-- Marcello Simão Branco

[1] Nesse sentido, creio que a discussão de um livro como Solaris, de Stanislaw Lem, seria um acréscimo interessante à obra.

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