sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Coisas frágeis, Neil Gaiman

Coisas frágeis (Fragile things), Neil Gaiman. 208 páginas. Tradução se Micheli de Aguiar Vartuni. Editora Conrad, São Paulo, 2008.

Na edição de 2008 da Festa Literária Internacional de Parati, a participação do escritor e roteirista britânico Neil Gaiman surpreendeu a todos, centralizando o assédio da imprensa e dos fãs, que formavam filas imensas para conseguir um autógrafo do escritor. Gaiman chegou a ficar mais de cinco horas numa seção de autógrafos.
Houve alguma ciumeira quanto a isso, afinal a maior parte dos fãs de Gaiman são leitores de histórias em quadrinhos, um tipo de literatura não muito bem visto nos meios mais eruditos e até bem pouco tempo, os roteiristas de quadrinhos e os escritores de livros viviam em universos bem diferentes. Gardner Fox, que durante anos escreveu roteiros para a editora de quadrinhos DC, publicou muitos romances de gênero, e um e outro escritores ficaram mais conhecidos pelas adaptações de seus livros à nona arte, como os americanos Robert E. Howard (de Conan, o bárbaro) e Edgar Rice Burrougs (de Tarzan dos macacos).
Essa história começou a mudar depois que o roteirista inglês Alan Moore estreou nos EUA escrevendo para a revista O monstro do pântano. O grande sucesso de Moore motivou a editora DC a contratar seu colega Neil Gaiman, escritor nascido em 1960 em Portchester, Inglaterra, para reformular a personagem Orquídea Negra, que resultou numa minissérie ilustrada por seu parceiro de projetos anteriores, o também inglês Dave McKean.
Em seguida, Gaiman recebeu da DC a missão de reformular Sandman, super-herói de pouca profundidade e quase nenhum apelo. Ao longo da série, publicada entre 1988 e 1996, Gaiman elaborou uma narrativa cheia de drama e mistério com doses maciças de referências literárias, e tornou a revista no maior sucesso dos quadrinhos em todo o mundo. As histórias tinham um tom fantástico e melancólico que agradava leitores de todas as idades e sexos – tanto que Sandman é a revista mais lida entre as mulheres. Em 1991, Gaiman ganhou o prêmio literário Fantasy World com o roteiro de Sandman “Sonhos de uma noite de verão”.
A primeira experiência literária de Gaiman foi o romance Belas maldições (Good omens), escrito em parceria com Terry Pratchett (1948-2015) e publicado em 1990, uma sátira às histórias de horror escatológico. Em 1999, publicou a minissérie em quadrinhos Livros de Magia, que muitos acreditam ser precussor de Harry Potter, da também britânica J. K. Rowling.
Gaiman escrevia roteiros cada vez mais literários para o mercado de quadrinhos, ficando na periferia da literatura, como Stardust, ilustrado por Charles Vess, e Sandman: Os caçadores de sonhos, ilustrado por Yoshitaka Amano. Em 1996, novelizou a série de TV britânica Lugar nenhum (Neverwhere).
Em 2002, Gaiman finalmente entrou pela porta da frente do mercado literário com o romance Deuses americanos (American gods), agraciado com os prêmios Hugo e Nebula. No ano seguinte repetiu a dose com a novela infantil Coraline.  Em 2005 publicou o romance Os filhos de Anansi (Anansi boys) e, no ano seguinte, a antologia Fumaça e espelhos (Smoke and mirrors). Enfim, em 2008, foi publicada no Brasil a coletânea Coisas frágeis (Fragile things), que é objeto desta resenha. Publicada em 2006 na Inglaterra e premiada com o Locus 2007, a coletânea contava originalmente com 32 peças, entre contos, noveletas e poemas, entre eles um miniconto na apresentação. Gaiman declarou não ter gostado do tratamento que a editora Conrad deu a coletânea, pois a edição brasileira traduziu apenas nove textos, ignorando o restante não se sabe por quais motivos. Entre os textos cortados, há dois contos também premiados com o Locus: "Forbidden brides of the faceless slaves in the secret house of the night of dread desire" (2005) e "Closing time" (2004). Por aí já imaginamos o que perdemos os leitores brasileiros.*
Mas antes pouco do que nada. Os nove contos publicados são todos de excelente qualidade e muitos deles dialogam com outros trabalhos de Gaiman e com obras de outros autores. A começar pela noveleta "Um estudo em esmeralda" (A study in emerald) escrita sob encomenda para uma antologia temática. Trata-se de uma ficção alternativa envolvendo Sherlock Holmes - a famosa personagem de Sir Arthur Conan Doyle - e a cosmologia mística de H. P. Lovecraft. O detetive da história e seu assistente-narrador são chamados pela polícia de Londres para investigar o assassinato de um membro da realeza européia que visitava a cidade. A rainha estava especialmente interessada na solução desse caso politicamente constrangedor. As investigações levam a dupla a um teatro, onde encontram entre os atores os suspeitos do crime, ativistas políticos que combatem a monarquia britânica e mundial, uma vez que a Terra dessa realidade não pertence mais aos homens. Trata-se de uma raras histórias inteligentes de final surpresa, em que tudo o que se viu revela não ser de fato o que se pensava. A moldura lovecraftiana dá um ar moderno à peça, que pode ser perfeitamente alinhada a onda steampunk. O trabalho ganhou merecidamente o prêmio Hugo para melhor noveleta em 2004.
"A vez de Outubro" (October in the chair) foi escrito para a antologia Conjunctions, de Peter Straub, e recebeu o prêmio Locus de melhor conto em 2003. Os meses do ano encontram-se anualmente numa floresta para contarem suas experiências. Há alguma confusão, já que os meses não se entendem muito bem quanto a ordem de apresentação. Alguns são expansivos e falastrões, outros introspectivos e melancólicos, e cada um vai contando a sua história. Outubro conta sobre um menino que, oprimido pela presença superior de seu irmão gêmeo, decide fugir de casa. Alguns quilômetros de caminhada e logo depois do pôr-do-sol, ele encontra um vilarejo arruinado e ali conhece o fantasma de um outro garoto. Ambos passam a noite se divertindo entre as ruínas e, quando chega o dia e a hora de dizer adeus, o jovem terá de tomar a mais importante decisão da sua vida. Um conto suave e de aparência singela, mas extremamente assustador, como caberia à Ray Bradbury a quem Gaiman dedicou o conto.
"Lembranças e tesouros" (Keepsakes and treasures)  foi escrita originalmente para uma antologia de histórias em quadrinhos e é a história mais barra-pesada do livro. Quem conta a história é Smith, leão de chácara de um figurão do submundo londrino chamado Sr. Alice, que está negociando a compra do  lendário Tesouro dos Shahinai por um valor astronômico em diamantes e não quer que nada dê errado, pois os vendedores são gente perigosa e desconfiada. A compra sigilosa é realizada num prédio antigo e labiríntico em que paira um clima de irrealidade. O tesouro é o homem mais lindo do mundo, um jovem perfeito criado especialmente para esse fim, o qual o Sr. Alice pretende usar como seu preciso objeto sexual.
"Os fatos no caso da partida da senhorita Finch" (The facts in the case of the departure of Miss Finch) é mais divertido, embora tenha uma boa carga de horror. Escrito sob inspiração de um desenho de Frank Frazetta – a famosa ilustração em que uma jovem belíssima caminha entre dois tigres dentes-de-sabre  – o conto é narrado por um homem que foi convidado a acompanhar um casal de amigos a uma peça de teatro circense experimental, cuja única seção será apresentada nos subterrâneos de Londres. Ele deve acompanhar a esquisita senhorita Finch, uma intelectual retraída, especialista em biogeologia, na presença da qual ninguém fica muito a vontade. O espetáculo desloca-se por vários salões decrépitos e mal iluminados, com a apresentação de números estranhos e perigosos, nem sempre bem sucedidos. O público acredita que tratam-se de truques e segue se divertindo na medida do possível. Já no fim do espetáculo, a senhorita Finch é convidada para participar de um dos números que propõe realizar seu maior sonho, porém o maior sonho da biogeóloga está extinto há alguns milhares de anos.
"O problema de Susan" (The problem of Susan) tem um fundo metalingüístico elegante e bem armado, pois toda a história se desenrola durante uma entrevista que uma jornalista faz com uma velha senhora especialista em livros infantis. Por outro lado, trata-se também de uma ficção alternativa, uma vez que Gaiman toma emprestado aqui a personagem Susan de As crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis. Enquanto a conversa segue, a envelhecida Susan retoma de alguma maneira sua aventura no guarda-roupa e reencontra a feiticeira e o leão. Mas eles agora estão ali para selar o seu destino, depois que ela cresceu e continuou.
"Golias" (Goliath) foi escrito sob encomenda para o site do filme Matrix, antes que ele estreasse. Gaiman diz que leu o roteiro do filme e então escreveu esta história, em que um homem tem sua vida de fracasso reconstruída pela Matrix, uma vida que agora ele goza plenamente e na qual realiza todos os seus sonhos, mas cujo objetivo é que ele se sacrifique pelo planeta quando chegar a hora. E ela chegou.
"Como conversar com garotas em festas" (How to talk to girls at parties) foi publicado primeiro nesta antologia e indicado ao prêmio Hugo 2007 de melhor conto. Narra a aventura de dois adolescentes – um tímido e outro despachado – que vão a uma festa que eles não sabem exatamente onde acontece. No caminho, o jovem despachado instrui o seu colega tímido em como se aproximar das garotas. Quando estão na região da festa, escutam o sons de música e imediatamente concluem ser ali o lugar que procuram. Logo estão paquerando as garotas, o despachado avançando o sinal enquanto o tímido faz tentativas com várias meninas. Mas a paquera dos garotos vai ficando cada vez mais estranha porque aquela não era exatamente a festa que eles estavam procurando.
"Pássaro-do-Sol" (Sunbird) ganhou o prêmio Locus 2006 de melhor conto. Gaiman confessa que tentou emular o estilo do escritor americano R. A Lafferty, pouco publicado em língua portuguesa. Esta divertida história trata de um grupo de gourmets que formam uma sociedade secreta dedicada a devorar toda a espécie de comida. Depois de muito anos de experiências bizarras, parece tudo já foi deglutido e não há mais nenhum prato novo no cardápio. Então um deles, justamente o mais pobre – na verdade, um mendigo – propõe que eles comam o lendário pássaro do sol da Cidade de Sol, no Cairo. Por absurda que soasse a sugestão, ela acaba aceita pelo grupo, que monta uma custosa expedição ao Egito em busca da iguaria, que o mendigo conhece muito bem por motivos que serão explicados na altura devida.
Em "O monarca do vale" (The monarch of the glen), Gaiman retoma Shadow, o personagem de seu romance Deuses americanos, ao lado de Smith e o Sr. Alice, vistos em "Lembranças e tesouros", para recontar a luta de Beowulf e Greendel no seu cenário original, as regiões remotas da Escócia. Shadow está vagando pela região e seu tamanho e habilidade são notados por um aldeão, que o convida para trabalhar de segurança numa festa de ricaços que vai acontecer num castelo ali por perto. Ele é alertado por uma funcionária do hotel para que não aceite o serviço, que é muito mais perigoso do que parece, mas Shadow está sem dinheiro e acaba aceitando. Quando chega o dia do evento e Shadow comparece para o serviço, é aceito com muita cortesia e instruído nas normas de conduta de uma festa dessa natureza. Mas suas funções ali vão muito além de simplesmente proteger os ricaços da antipatia dos aldeões. Trata-se do trabalho mais longo da coletânea.
Em todas as peças Gaiman demostra habilidade plena nas ferramentas narrativas e nos protocolos dos gêneros. Os contos dialogam com peças importantes da fantasia mundial, dando-lhes um especial toque contemporâneo.
É impossível não comparar a ficção de Gaiman com a de Ray Bradbury – pra quem o autor dedicou o volume, juntamente com Harlan Ellison e Robert Sheckley – com a significativa diferença que Bradbury trata do meio-oeste americano e Gaiman fixa-se nos cenários britânicos que são o seu berço.
Gaiman caminha a passos largos para se tornar o grande nome da literatura de fantasia nos próximos anos, mesmo sem ter uma heptalogia adaptada para o cinema, embora já tenha alguns de suas histórias filmadas, como o romance infantil Coraline (2009) e a hq Stardust (2007), além do roteiro para a animação Beowulf, dirigida por Robert Zemeckis, entre outros. O carisma de Neil Gaiman emana das reais e palpáveis qualidade e sinceridade de seu trabalho. Fiquemos, então, de olho-vivo nele.
Cesar Silva
* Em 2010, a editora Conrad publicou os textos cortados em um segundo volume, Coisas frágeis II.

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