sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Contos Fantásticos Amor e Sexo, Braulio Tavares, organizador

Contos Fantásticos Amor e Sexo. Organização, apresentação e traduções de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Imã Editorial, 2011. 226 páginas.

A ficção científica é um gênero que prescinde de limites de tempo, espaço e também de assunto. Certa vez o escritor Octavio Aragão afirmou que “tudo é FC”. Causou muita polêmica, pois foi mal compreendido fora do contexto em que sua sentença deveria ser aplicada. O fato é que, em tese, qualquer tema é passível de ser discutido dentro da ficção científica. Assim, amor e sexo, dois assuntos relacionados como dos mais importantes para o ser humano, embora pouco lembrados como temas próprios de FC&F, também podem ganhar tratamento no interior do gênero.
Mas esta nova antologia de Braulio Tavares, surgida nos estertores de 2011, não é apenas uma seleção caprichada de contos e noveletas sobre FC. Como o próprio título sugere, há uma mistura, com histórias também de horror e fantástico, por vezes de forma pura, por vezes de forma híbrida em termos de limites de gênero. Mas dada a alta qualidade média das histórias, mesmo puristas de um gênero ou outro, acredito que não se incomodarão com esta proposta mais abrangente.
O livro é bem produzido, com uma capa que inspira mais o estranhamento do que a sensualidade, alterna algumas páginas na cor preta com a branca e tem pequenas ilustrações igualmente sugestivas entre um texto e outro, assinadas por Odilon Redon (1840-1916) que, desconfio,  deve ter sido descoberto durante o processo de pesquisa para o livro.
A antologia tem dez narrativas e um posfácio assinado pelo organizador.  Se observei acima a variedade de gêneros, o rol de autores que os representam não fica atrás: há os clássicos, como Conan Doyle e Poe, passando por nomes mais ligados ao realismo mainstream , como Balzac, e aqueles mais contemporâneos, voltados à FC, como Delany e Silverberg. Além disso a antologia promove a estreia no país de pelo menos um autor, Jonh Crowley, e publica novamente o talento ainda a ser descoberto pelo leitor brasileiro do australiano Greg Egan.
Contos Fantásticos Amor e Sexo não é uma antologia que reúne aventuras amorosas com finais felizes ou grandes desempenhos sexuais dos personagens. Ao contrário, como ressalta sem uma certa surpresa o próprio organizador no posfácio não há finais felizes, bem resolvidos nas histórias selecionadas. Amor e sexo são abordados do ponto de vista dramático e, por consequência, psicológico. Para Tavares, é de uma literatura mais complexa o tratamento do amor e do sexo como problemas, não como soluções. Desencadeiam situações dramáticas, e não como possíveis conclusões de uma trajetória. Já numa ficção de caráter mais realista ou mesmo pornográfica, busca-se uma solução satisfatória para os personagens e para o leitor. A sensação de um romance feliz ou a plena excitação sexual.
Neste sentido, a FC&F brasileira teve ao menos duas tentativas, primeiro com Como Era Gostosa a Minha Alienígena!: Antologia de Contos Eróticos Fantásticos, (2003), e depois com Érótica Fantástica (2012), ambas organizadas por Gerson Lodi-Ribeiro. São antologias que, de maneira geral, ressaltaram mais o sexo e seus efeitos em si. A primeira principalmente pela ótica das relações sexuais não usuais entre humanos e monstros ou alienígenas, e a mais recente com uma maior mistura de temas e gêneros, em torno do sexo e da sensualidade.
Mas se, ao invés, o resultado da antologia selecionada por Tavares apresenta um tom mais cinzento, não falta emoção às histórias, pois elas problematizam o desejo e a paixão, em um nível médio mais sofisticado do que o usualmente encontrado, seja em livros mainstream ou mesmo no interior da FC&F, por vezes remetidos aos chavões ou a reafirmações de estereótipos em seu desenvolvimento ou solução. Assim, algumas histórias deste livro primam pelo estranhamento, outras pela intensidade trágica do drama e também algumas por uma melancolia esperançosa.
O texto de abertura, “Para Sempre, e Gomorra!”, de Samuel R. Delany foi publicado em 1967 na controversa e influente antologia Dangerous Visions, organizada por Harlan Ellison. No contexto da corrida espacial procura especular como será quando (e se) os astronautas estiverem tão adaptados à vida no espaço, que terão uma constituição física diferente das pessoas que vivem na Terra. No conto são os chamados spacers que passam a ser objeto de desejo e perversão sexual, talvez instigados por sua androginia.
Robert Silverberg abordou o tema do sexo por mais de uma vez, e quando vi seu nome na capa pensei que veria no livro a tão tocante quanto improvável história de amor de um golfinho por uma mulher, em “Ismael Apaixonado” (1970). Mas o texto presente é “No Grupo”, uma pungente história de sexo grupal no futuro em que um dos integrantes sente falta de um relacionamento mais antigo, com uma única parceira. Publicado em 1973, ainda ecoa a liberação sexual dos anos 1960, e tem o mérito de ser uma nova história do autor publicada no Brasil, depois de inacreditáveis 19 anos.[1]
John Crowley e Greg Egan procuram refletir sobre a questão da memória e da intimidade levadas ao paroxismo em seus textos, respectivamente “Neve” e “Mais Perto”. Na primeira, um viúvo fica obcecado com a possibilidade de relembrar (e reviver) todos os momentos ao lado de seu amor perdido, através de vídeos gravados dos momentos que viveram juntos. Na segunda, uma espécie de pen-drive acoplado no cérebro – chamado de Ndoli – torna possível que uma pessoa partilhe inteiramente dos pensamentos, memórias e sensações da outra. Cada vez mais perto, numa intimidade que leva à fusão, tanto no texto de Crowley como no de Egan, conduz a resultados que dissimulam, anulam o que também compõem o desejo, a paixão e o amor: a busca por um complemento do que nos falta.
Numa chave de maior romantismo, Ruth Rendell e o desconhecido William M. Lee apresentam as duas histórias que me causaram o maior impacto emocional. Em “O Duplo”, a autora inglesa conta sobre uma jovem que por acaso encontra a sua versão mais velha num parque. Ela fica muito perturbada, pois seguindo as crenças esotéricas de sua mãe, acredita que morrerá depois de um ano devido a este encontro.  Mas é seu nomorado que potencializa o drama, ao se aproximar cada vez mais da versão mais madura. O desfecho é ambíguo, pois tanto pode ser fruto do mal entendido gerado no triangulo amoroso, como por de fato ser causado por uma espécie de maldição.
“Uma Mensagem de Charity” é um dos textos românticos mais bonitos e delicados que já li. Fala de um amor impossível – e por isso mesmo não concretizável, portanto, não feliz – entre uma garota do século 18 e um garoto contemporâneo do final do século 20. Mas como isso é possível? Ambos ficam doentes e, sob febre e delírios, compartilham telepaticamente os pensamentos através do tempo. Telepatia pertence tradicionalmente à FC, mas nesta história também pode ser remetida ao fantástico. Seja como for, ambos se apaixonam. Mas a garota sofre uma acusação de bruxaria, por inadvertidamente dizer estar ouvindo vozes em sua mente, e precisará da orientação de seu distante amor para se safar da fogueira.  O romance acaba não prosperando – não haveria como –, mas a mensagem final deixada por ela no contato final entre os dois não deixa dúvidas sobre o grande amor vivido. Um amor que lutou não contra a barreira do espaço, mas do tempo!
Honoré de Balzac, Conan Doyle e Poe representam os autores mais clássicos neste livro e suas histórias dão um toque mais, digamos, respeitável à obra em termos de reconhecimento literário. Neste particular, soma-se também o brasileiro Fausto Cunha que embora não tenha o mesmo status que os outros apresenta em termos temáticos o conto “61 Cigni”, que também sublinha a questão da solidão como central e a incompreensão de relações mal resolvidas. Seja em termos trágicos como no conto de Cunha e Balzac, ou na solução mais sobrenatural ou mística em Poe e Conan Doyle.
Com esta nova antologia, Braulio Tavares reafirma sua condição de pesquisador dedicado, e um selecionador refinado e maduro. Atento tanto à busca da qualidade, quanto à formação do leitor com textos de autores mais sancionados, como de outros mais obscuros mas não menos interessantes, pelo menos para o tema em questão. Nesse sentido é um livro que acrescenta e enriquece a reflexão sobre as muitas questões do amor e do sexo, por um viés não convencional, e também por isso muito iluminador do quanto podem render histórias emocionantes e surpreendentes dentro do ramo fantástico da literatura.

-- Marcello Simão Branco

[1] A última aparição editorial de Robert Silverberg no Brasil ocorreu com o romance Uma Pequena Morte, publicado pela Editora 34, em 1993. O responsável pela publicação foi o mesmo Braulio Tavares.

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