terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Memórias Encontradas numa Banheira, Stanislaw Lem

Memórias Encontradas numa Banheira (Pamiętnik znaleziony w wannie, de 1961), Stanislaw Lem, 180 páginas. Tradução de Mário Molina. Francisco Alves Editora, coleção Mundos da Ficção Científica, n. 36, 1985.

Se fosse possível definir em uma palavra este romance curto de ficção científica, seria “angustiante”.
Stanislaw Lem (1921-2006), mais conhecido como autor do clássico Solaris (1961), é um autor muito complexo do ponto de vista temático e intelectual. Sua verve satírica por vezes chega ao limite deste recurso, tornando-o incômodo e amargo. Este livro é o que poderia ser chamado de um dos mais "kafkianos" já escritos. Em qualquer relação dos livros que mais levam à frente as influências do imaginário e temática de Franz Kafka (1883-1924), este estaria na linha de frente, sem fazer feio ao que concebeu o escritor tcheco. Lem é cuidadoso e esperto o suficiente para não se calcar numa leitura explicitamente kafkiana, recusando a fácil acusação de estar realizando mais um dos famigerados pastiches.
O autor polonês recobre a prosa de uma situação tão absurda, que o próprio personagem que se indaga do absurdo em que está inserido, transforma-se, ele mesmo, no próprio absurdo.
Memórias Encontradas numa Banheira divide-se em duas partes claramente distintas. E o que torna o livro classificável como FC é o recurso à ciosa e interessantíssima introdução (que vale por si), às “memórias” propriamente ditas.
Uma praga de origem cósmica destrói os papéis de nosso planeta. Os que existem e os que são construídos. Todos os documentos, registros, livros e fontes de conhecimento e comunicação da humanidade baseados no papel são perdidos.
Entramos em colapso e no futuro distante, paleógrafos acham um manuscrito dentro de uma banheira em uma fortaleza subterrânea. E passam a decifrar o significado deste manuscrito, as memórias propriamente ditas, que passam a ser narradas em primeira pessoa, pelo sujeito que se transformará no peregrino do absurdo, do desatino sem fim, de um ir e vir em corredores, salas, escritórios, portas e elevadores à procura das instruções de sua missão, seja ela qual for.
O autor faz um libelo contra a onipotência do Estado totalitário. Sim, totalitário e não autoritário, pois em sua fortaleza subterrânea de inspiração político-religiosa todos são servidores cegos de uma ordem de reconstrução do mundo, só que esta ordem propriamente dita, dilui-se no próprio absurdo de regras e procedimentos já sem sentido, porque não questionados, apenas seguidos numa corrente sem fim de ordens, contra-ordens, ditames e não ditames, onde a forma vale mais que o conteúdo, sem que se perca de vista o peso da ideologia fundadora, mesmo que ela, em si, não faça mais sentido para ninguém individualmente.
Se o foco de Lem é o socialismo polonês, reprodutor imposto do soviético, sua alegoria política supera sua crítica factual, porque ela fala, em ampla escala, de todas as formas de opressão e do nonsense maior da suprema burocratização de todas as formas de relacionamento, no qual, nenhum humano é mais humano, pois não se reconhece nenhuma chance de individualidade e espírito crítico, num regime monolítico e opressor.
No fim da jornada nos resta apenas um sorriso amargo e uma sensação de angústia e libertação. Pena que o personagem que vislumbra uma saída do terror fique imerso em seus próprios medos e dúvidas e se imiscua no terror que em vão ele procurou entender.
Uma obra inteligente, instigante, e mantém sua atualidade como crítica que se pode fazer a qualquer forma de organização social que não priorize a liberdade individual e a pluralidade de escolhas e expressões humanas.

– Marcello Simão Branco

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