segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A Torre de Vidro

A Torre de Vidro (Tower of Glass), de Robert Silverberg. Tradução de Lucilia Filipe, 174 páginas. Lisboa: Publicações Europa-América, Coleção Ficção Científica, n. 13, 1981.


Em meados dos anos 1960 Robert Silverberg se reinventou como escritor de ficção científica. Surgido no início da década anterior como um autor extremamente produtivo, mas com uma prosa rápida e relativamente pobre, se transformou com textos altamente estilizados em termos literários, explorando temas difíceis e liderados por personagens psicologicamente densos.

É difícil dizer se Silverberg obteve nesta época seu ponto mais alto na ficção curta ou nos romances, pois em ambos os formatos atingiu níveis de excelência poucas vezes vista dentro do gênero. Contos como, por exemplo, “Passageiros” (“Passengers”, 1967), “A Dança do Sol” (“Sundance”, 1968) e a novela “Asas na Noite” (“Nightwings”, 1968), e romances como, por exemplo, Espinhos (Thorns, 1967), Mundos Fechados (The World Inside, 1971), e este A Torre de Vidro (Tower of Glass), lançado em 1970 e finalista dos dois principais prêmios norte-americanos do gênero, o Hugo e o Nebula.
Estamos no início do século 23 e a humanidade possui a tecnologia para as viagens interestelares. Na Terra ocorrem duas autênticas revoluções. Em primeiro lugar podemos dispor da maior parte do tempo sem ter de pensar em trabalho, pois a maioria das atividades produtivas é exercida por androides bastante fortes e inteligentes. Em segundo lugar as distâncias tornaram-se obsoletas, assim como os meios de transportes convencionais, pois as pessoas usam o transmate, um teletransporte que permite percorrer diferentes pontos do planeta em um único dia. Embora pouco explorada dentro da história, as fronteiras nacionais e a própria noção de soberania se enfraquecem bastante, e sugere-se que haja um governo mundial.
Simeon Krug é o magnata que concentra diferentes atividades econômicas e responsável pela criação e produção dos androides. Após a Terra receber um possível sinal de uma civilização extraterrestre, Krug torna-se obcecado com a ideia de fazer um contato, e promove a construção faraônica de uma torre que, quando pronta, terá 1200 metros e, por meio da utilização dos raios táquion – mais rápidos que a velocidade da luz –, permitirá o envio de mensagens a esta suposta civilização alienígena. A mão-de-obra utilizada para construir a torre são os androides, que se subdividem nos alfas, betas e gamas, em ordem decrescente de inteligência. Este é o contexto em que se passa um romance curto e muito movimentado.
Um dos aspectos fortes da história é que ela é desenvolvida, gradativamente, a partir de diferentes personagens, com pontos de vista e objetivos diferentes. Assim, temos em Krug um sujeito poderoso e egocêntrico que tem tudo ao seu dispor, e pensa que nada pode detê-lo. Já os androides são a maioria dos seres vivos no planeta, força de trabalho indispensável para Krug, mas com divisões internas entre eles, com os mais obedientes e os mais contestadores. Há ainda a perspectiva do filho Manuel Krug, que não tem o mesmo entusiasmo pelo império do pai e seus objetivos, e divide-se entre o relacionamento com sua mulher e uma androide, a quem verdadeiramente ama, embora tenha sentimentos contraditórios, por causa de sua origem.
Krug torna-se cada vez mais obsessivo com a construção da mais nova maravilha do mundo e enquanto ela é construída organiza passeios onde leva políticos, artistas e cientistas para conhecê-la. Enquanto isso dezenas de androides morrem durante a construção da torre. Por não se importar com isso, abre-se espaço para crescentes dúvidas entre os androides sobre a estima que Krug possa nutrir por eles. Os androides criam uma religião secreta em que pedem proteção e louvor a seu Deus, no caso, Simeon Krug, procurando desvencilhar, em parte, a figura humana de uma divina. A maioria acredita que não irão permanecer para sempre como simples serviçais, pois o seu criador os libertará, reconhecendo que eles devem ter direitos civis e políticos iguais ao dos seres humanos. Outra corrente é mais cética e organiza o Partido da Integração Androide (PIA), que reivindica abertamente a libertação de sua condição escravocrata e igualdade política. Krug tem desconhecimento da religião e procura não levar a sério o movimento político. Até que uma das líderes do partido é morta por um secretário de Krug, e a pressão por emancipação começa a se tornar uma realidade.
Como se vê este livro retoma um tema tradicional da FC, quase que um subgênero, o do relacionamento quase sempre conflitivo entre criador e criatura, entre o homem e a máquina. Nem sempre os resultados são bons, mas inclui clássicos como Frankenstein (idem, 1818), de Mary Shelley, A Fábrica de Robôs (R.U.R, 1920), de Karel Capek, Blade Runner: O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep?, 1966), de Philip K. Dick. Perto destes livros Silverberg não fica a dever, pois insere questões próprias e as desenvolve com segurança.
É interessante observar que a humanidade procura por uma inteligência no universo para poder sair de certa solidão existencial e compartilhar com a experiência de outra civilização, e suas possíveis crenças, filosofia e ciência. Mas não percebe que ela mesma forjou uma nova civilização, a dos androides. Talvez por ter sido criada por ela, não a reconhece como igual, mas sim como um subproduto, gerando exploração e preconceito. Nem mesmo quando Krug descobre que é visto como um Deus ele se compadece de sua criação, ao contrário, reafirmando que eles são “coisas” que devem se colocar no seu devido lugar.
A Torre Vidro é um romance complexo, que discute a questão do preconceito e do racismo – tão caro à sociedade norte-americana nos conturbados anos 1960 –, tanto do ponto de vista político, como do religioso que, torna-se mais dramático quando os androides descobrem que o seu Deus os despreza. De certa forma não deixa de ser um pouco estranho que os androides reajam de forma tão passional e violenta, tendo sido eles concebidos como seres extremamente racionais, a serviço do trabalho e do aperfeiçoamento de uma sociedade cada vez mais baseada na tecnologia do qual, inclusive, eles são o supra sumo. Mas o fato é que eles estão se tornando cada vez mais humanos.
É um livro que se lê de forma relativamente rápida pois, apesar do contexto complexo, tem uma narrativa ágil e cheia de reviravoltas. Em certo sentido, não dá tempo de desenvolver de forma mais densa algumas situações e tornar os personagens mais interessantes, embora não cheguem a ser superficiais.  Por isso, é uma pena que o livro seja tão curto, pois se tivesse ao menos mais umas cem páginas alguns desdobramentos poderiam ter sido mais bem elaborados, e talvez até a conclusão da história pudesse ser outra. Em todo caso, é um bom exemplo do que uma ficção científica escrita por um autor talentoso e sensível às questões de seu tempo pode proporcionar.

– Marcello Simão Branco

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