terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Diário da Guerra de São Paulo

Diário da guerra de São Paulo, Fernando Bonassi. Fotos de João Wainer. 104 páginas. São Paulo: Publifolha. Lançado em 2007.

De forma involuntária e inesperada tive a fortuna de achar este Diário da Guerra de São Paulo, na livraria Temos Livros, ponto tradicional dos antigos fãs de ficção científica, no Centro da capital paulista, em 2007. E só lá, não vi em mais nenhum outro ponto de venda.
Logo no início o autor alerta: “Aviso aos chatos. Livros como este são escritos para que histórias como estas não aconteçam.” É um tipo de desculpa aos seus leitores e convivas pela ousadia de escrever uma história de ficção científica? Seja como for, anuncia sua premissa de como encara o gênero, numa linha que segue os passos de Ray Bradbury, para quem cabe ao gênero evitar os nossos possíveis erros no futuro.
Como anuncia o título a novela trata de São Paulo, aqui chamada de “ex-cidade”. Num futuro incerto, mas não muito distante lemos o diário de um adolescente, um “neutro” que ainda não tomou partido entre os adultos ou as crianças, a grande clivagem social deste mundo. É que em uma cidade sitiada e em ruínas, existem várias guerrilhas de crianças abandonadas, fortemente armadas e com um apetite voraz em matar – e eventualmente também comer – os adultos, a quem culpam por abortarem os seus futuros.
São Paulo, metrópole que virou uma “ex-cidade” nas palavras do nosso confessor sem nome, é um caos completo, sem sistema de transporte, com boa parte de suas ruas e pontes destruídas e com comunicações apenas clandestinas feitas por grupos particulares. Há extrema falta de alimentos, roupas e remédios. E talvez o mais dramático seja as variações de temperatura, que se situam entre 72o C de dia a -112o C à noite. Uma amplitude térmica semelhante à encontrada em Marte. Chove frequentemente também, mas cai mais ácido do que água. E quando há um tempo aberto, o perigo é a da radiação solar. Colocar os pés na rua é um risco de morte iminente, em meio a tiroteios inesperados, assaltos, sequestros e  balas perdidas.
Nos arredores do que sobrou de São Paulo, existem cidades que ainda são minimamente viáveis. Só que elas construíram barreiras para impedir o acesso dos refugiados. Muitos tentam entrar e são rechaçados ou então se alojam em barracas em suas cercanias. Para entrar numa dessas cidades e ser aceito é preciso que seja convidado por alguém que já mora em uma delas. Os pais do narrador temtam, desesperadamente, contactar um parente para poder sair do inferno paulistano.
É curioso que também os nomes dos bairros, avenidas, praças etc de São Paulo não são nomeados, mas apenas como uma referência indireta é que se sabe que o “Centro Exato” é a Praça da Sé e o “Planalto” é a região da Avenida Paulista, por exemplo. No fim do livro, inclusive, há uma mapa em duas páginas que dão uma idéia do que como foi renomeada a “ex-cidade”.
Um trecho do clima angustiante da história e a citação de uma das partes conhecidas da cidade é ilustrado neste trecho:

“Na região dos túneis soterrados sob a grande artéria oeste-centro, o asfalto derretido avança sobre as calçadas esburacadas, formando esculturas de ondas secas. Entulho e sucata cobrem o passeio, bloqueando a passagem pelo meio dele, me obrigando a abandonar as marquises, ziguezagueando pelas carcaças dos veículos abandonados amontoados, me expondo às ‘brincadeiras’ dos atiradores drogados ou apenas malucos nas janelas dos edifícios.
“Rajadas de balas me seguiram a maior parte do tempo.
“Pausa para descanso. Dois tabletes químicos de leite e meio litro de água filtrada.” (página 69).

A esta altura o adolescente está à procura de Ana C. uma garota por que está apaixonado. Ela é de fato a única luz que brilha em sua vida e por meio da união dos dois irá frutificar uma esperança ao final da história.
É uma história interessante e que vale ser conhecida pelos leitores de ficção científica. Claro que para quem está acostumado com o tema, talvez não acrescente muito. Mas o que importa é a perspectiva de acompanhar uma São Paulo devastada que, ao que parece, caiu sozinha numa espécie de guerra civil. Não fica claro, pois Bonassi não revela o que teria acontecido, o que faz sentido se pensarmos que quem narra os acontecimentos é, afinal, alguém que está imerso neste mundo e, só conheceu ele, já que quando nasceu o mundo já era deste jeito.
Este é mais um exemplo de uma ficção científica com pendor de crítica social. Parte de um viés infanto-juvenil, ilustrado pelo discurso final em que o adolescente justifica aos pais porque não quer ir morar com eles e deseja ficar com sua garota. Mas este aspecto é secundário, vale é o desenvolvimento do tema e a reflexão sobre as mazelas que vivemos nos dias de hoje e que pode, eventualmente, nos levar a uma situação no mínimo próxima ao relatado pelo diário. Para dar uma carga realista ainda maior o texto é ilustrado com excelentes fotos de página inteira em preto e branco, de João Wainer. Algumas se encaixam bem, inclusive, com os trechos da narrativa, trazendo mais impacto ao drama relatado.
Fernando Bonassi, um conhecido e prestigioso escritor de prosas urbanas, na literatura, no teatro e também no cinema, escreve com desenvoltura, com estilo ora seco, ora com floreios poéticos. Não há espaço para um tom dramático, num ritmo veloz e objetivo, como num relato mesmo de um diário. Algumas opções me estranharam, como escrever “um” como “1”, com o número mesmo. O que é isso? Uma referência a um jeito adolescente de escrever nestes tempos de internet? Se em termos de ficção científica o melhor que podemos dizer é que a opção pela forma é a sua maior virtude, a história não desagrada e ainda provoca a reflexão sobre o que pode vir a acontecer mas, mais importante, sobre problemas que vivemos já, nos dias de hoje, como a desigualdade social e a inviabilidade estrutural de uma metrópole.
– Marcello Simão Branco

2 comentários:

  1. Interessante, Marcello!
    Será que ainda encontro uma cópia na Temos Livros?

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  2. Oi Luke. Acho que não. Mais fácil tentar comprar pelo site da Publifolha.

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