quinta-feira, 29 de março de 2018

A Criatura do Cemitério (Graveyard Shift, EUA / Japão, 1990)


O escritor Stephen King é recordista em histórias adaptadas para o cinema, num trabalho difícil de catalogação pela grande e variada quantidade. Infelizmente, muitas delas tiveram resultados ruins, mas por outro lado, também tivemos filmes bem divertidos como é o caso de “A Criatura do Cemitério” (Graveyard Shift, 1990), baseado em conto que foi publicado na antologia “Sombras da Noite”.
Com direção de Ralph S. Singleton (em seu único trabalho no cinema, sendo mais conhecido como produtor), a história se passa numa pequena cidade americana que tem uma importante atividade comercial com a produção de tecidos num moinho, supervisionada pelo arrogante Sr. Warwick (Stephen Macht), que contrata o recém-chegado John Hall (David Andrews), um pacato viúvo à procura de trabalho.
O que ele não sabe é que o moinho é uma fábrica velha infestada de ratos, vizinha de um cemitério macabro, e que esconde um porão cheio de ambientes abandonados. E as coisas se complicam quando ele e outros funcionários como seu par romântico, a mocinha Jane Wisconsky (Kelly Wolf), e os colegas Danson (Andrew Divoff), Brogan (Vic Polizos), Carmichael (Jimmy Woodard) e Ippeston (Robert Alan Beuth), são convidados para fazer um trabalho especial de limpeza no porão para ativar uma nova produção, e precisam enfrentar além dos ratos famintos, uma imensa criatura assassina que quer provar o sabor de suas carnes e sangue.
“A Criatura do Cemitério” é o exemplo típico de um filme bagaceiro divertido, com produção de baixo orçamento, e com um monstro mutante gosmento concebido pelos antigos efeitos especiais dos anos 80- 90 do século passado, sem a artificialidade da moderna computação gráfica. Em seu roteiro temos as esperadas mortes sangrentas, perseguições, claustrofobia, situações de tensão e confrontos, aliados com uma infestação de ratos, esqueletos e cadáveres de um cemitério. E, de brinde, a sua história básica é inspirada num conto do mestre Stephen King.
O cultuado ator Brad Dourif, conhecido pela voz do boneco assassino Chucky, além de diversos outros filmes de horror, faz o papel de Cleveland, um insano exterminador de ratos, obcecado com sua tarefa de eliminar os roedores. Sua atuação é ótima, sendo um dos destaques do elenco, juntamente com Stephen Macht, que faz o chefe Warwick, um sujeito desonesto e carrasco com os funcionários.
Os cenários são ótimos, mostrando de forma convincente uma fábrica têxtil suja, cheia de bagunça, equipamentos velhos e com dezenas de ratos se movimentando livremente pelos corredores, tubulações e orifícios, além de um porão úmido, depressivo, evidenciando abandono e sujeira, escondendo passagens ocultas para outros ambientes ainda mais obscuros.
Não faltam mortes violentas, brutais, dolorosas, com sangue, mutilações e vísceras espalhadas, em ataques ferozes de uma “criatura do cemitério” ávida em experimentar a carne humana dos invasores de seu território. Recomendado como um filme de horror simples e de diversão garantida.
(Juvenatrix – 28/03/18)

sábado, 24 de março de 2018

The Black Cat (Il Gatto Nero, Itália, 1989)



O cineasta Luigi Cozzi é um nome lembrado no cinema fantástico italiano, por seus filmes bagaceiros como “Starcrash” (1978), “Alien – O Monstro Assassino” (1980) e “Paganini Horror” (1989), entre outros. Também em 1989 ele dirigiu e escreveu o roteiro (sob o pseudônimo Lewis Coates), da tranqueira “The Black Cat” (Il Gatto Nero), que recebeu o título picareta alternativo internacional “Demons 6: De Profundis”.
Na história, o diretor de cinema Marc Ravenna (Urbano Barberini) e seu sócio, o roteirista Dan Grudzinski (Maurizio Fardo, não creditado), envolvem-se num projeto para a realização de um grande filme de horror, inspirados pela lenda da bruxa Levana, a terceira de três deusas da dor, também conhecida como “mãe das lágrimas”, uma criatura maligna saída das profundezas (“De Profundis”). Marc é casado com a atriz Anne Ravenna (Florence Guérin) e Dan é o namorado da atriz Nora (a inglesa Caroline Munro, um rosto conhecido por vários filmes bagaceiros divertidos do gênero fantástico como “Drácula no Mundo da Minissaia”, 1972, “No Coração da Terra”, 1976, e “O Maníaco”, 1980).
Para conseguir financiamento para o projeto, eles recorrem ao famoso produtor Leonard Levin (Brett Halsey), um arrogante homem de negócios que decide fazer o filme com seu dinheiro. Porém, ninguém esperava que a bruxa Levana se materializasse e por não querer a produção do filme, passasse a aterrorizar Anne com pesadelos perturbadores, além de espalhar sangue e mortes aos envolvidos direta ou indiretamente na realização do filme, como a babá Sara (Luisa Maneri) ou a estudiosa de ocultismo Esther Semerani (Karina Huff).
“The Black Cat” ou “Il Gatto Nero” tem inspiração no conto “O Gato Preto”, de Edgar Allan Poe, e o roteiro de Luigi Cozzi mostra uma história exagerada na fantasia, com exercícios de metalinguagem (filme dentro de filme) e cujo resultado final não empolga muito. Tudo é muito datado dos anos 80, desde a trilha sonora aos efeitos bagaceiros de raios coloridos saindo dos olhos e mãos da bruxa. Tem até bons momentos de cenas “gore”, com tripas saindo de televisão, corpo explodindo, sangue e vômitos espalhados, além da interessante caracterização da bruxa, numa época sem CGI. Mas, o sangue derramado é insuficiente para garantir um interesse maior, já que a história é bem fraca. 
Curiosamente, o cineasta independente gaúcho Felipe M Guerra lançou um documentário em 2016 sobre a obra de Luigi Cozzi, que recebeu o título “FantastiCozzi”, trazendo depoimentos do diretor e trechos de seus filmes.
Outras curiosidades incluem citações em diálogos sobre o poeta dos malditos “Baudelaire” e do diretor Dario Argento e seu filme mais cultuado, “Suspiria” (1977), sobre a bruxa “Mãe dos Suspiros”.
Ainda tem a participação não creditada do cineasta Michele Soavi (de “O Pássaro Sangrento”, 1987, “A Catedral”, 1989, e “Pelo Amor e Pela Morte”, 1994), fazendo o papel de um diretor de cinema.
A atriz Giada Cozzi fez o papel da adolescente Sybil, uma espécie de fada mirim que orienta a perseguida atriz Anne a combater o mal da bruxa Levana. Ela é filha do diretor Luigi e participou de alguns filmes dele em 1989.
(Juvenatrix – 23/03/18)

sábado, 17 de março de 2018

Ogroff / Mad Mutilator (França, 1993)



N. G. Mount (creditado como Norbert Georges Mount) é um francês que brincou algumas vezes de diretor, roteirista, produtor e ator de filmes bagaceiros de horror e ficção científica. Em 1993 ele lançou a porcaria colossal “Dinosaur From the Deep”, a qual já escrevi uma breve resenha alertando sobre sua ruindade extrema, apesar da curiosidade de ter no elenco o diretor cultuado Jean Rollin.
Porém, dez anos antes, ele havia lançado um filme mais bagaceiro ainda. Trata-se do bizarro “Ogroff”, que também recebeu o título inglês “Mad Mutilator”. Praticamente não tem roteiro, pois a história é uma bagunça sem qualquer coerência e nada funciona no filme. O elenco é péssimo, os efeitos são toscos, falsos e inconvincentes, a trilha sonora é irritante, não existe continuidade e a produção geral é extremamente amadora.
Trata-se de uma mistura de “slasher”, “zumbis” e “vampirismo”. Ogroff é um lenhador psicopata mascarado assassino que mora numa cabana isolada na floresta. Ele é interpretado pelo próprio N. G. Mount e utiliza um machado alternando com uma motosserra para chacinar suas vítimas. Os mortos também não querem permanecer enterrados e saem de suas covas rasas. E um vampiro interpretado pelo veterano Howard Vernon (de vários filmes de Jesus Franco) tem uma participação rápida.
É até difícil registrar a sinopse, pois como já mencionado, não tem história. O assassino que vive no meio do mato está sempre procurando aleatoriamente oportunidades para matar pessoas desavisadas que invadem seu território. Entre as vítimas, tem uma família que pára o carro numa estrada e um grupo de jovens que está se divertindo na floresta, jogando xadrez. Em paralelo, os mortos decidem sair de seus túmulos, entrando em confronto com o psicopata mascarado, e um vampiro resgata uma mocinha fugitiva das atrocidades, e decide experimentar seu sangue.
Tem até uma criança brutalmente esquartejada, além de braços e pernas decepados, mutilações, vísceras e sangue falso para todos os lados. Mas, tudo filmado de forma tão amadora que não funciona nem como filme bagaceiro. O diretor se inspirou claramente em “A Noite dos Mortos-Vivos”, “Sexta-Feira 13”, “O Massacre da Serra Elétrica” e outros similares, apenas validando sua condição de fã dessas obras importantes do cinema de horror. Mas, em relação ao seu filme, ele não conseguiu agregar nada ao gênero.
A trilha sonora é horrível e irritante, com sons da floresta, pássaros e água corrente, tudo tão exagerado que incomoda. Entre as inúmeras cenas patéticas, podemos citar algumas como o assassino se masturbando com um machado; o descarte de um carro jogado num rio (na verdade é um carrinho miniatura de brinquedo que afunda numa pia de água, numa cena hilária); uma luta pessimamente coreografada entre o assassino e seu machado, com outro homem e sua motosserra; a mocinha perseguida e lutando para não morrer de forma violenta, decidindo se relacionar sexualmente com o psicopata, dormindo com ele. Além dessas bizarrices, tem uma cena onde o assassino sai de dentro do porta-malas de um carro, de forma totalmente aleatória, e surpreende o motorista, que tem uma morte sangrenta.
Todos os personagens não têm nome, nem função no filme, eles surgem do nada apenas para morrer dolorosamente nas mãos do psicopata da floresta. Aliás, o assassino esquarteja suas vítimas para depois fornecer os restos dos cadáveres como alimento para zumbis que ele mantém no porão de sua cabana. Além disso, os mortos também saem de suas sepulturas aleatoriamente, apenas para caminhar errantes por uma estrada deserta no meio do bosque, e perseguir os vivos.
São 90 minutos de duração que parecem intermináveis, numa dificuldade enorme em agüentar assistir até o final. Ficaria bem melhor se fosse apenas um curta metragem de não mais de 15 minutos, compilando algumas cenas razoáveis de violência, mesmo que mal feitas, e com a inclusão de um roteiro.
“Ogroff” é um exemplo de filme bagaceiro que não diverte e apenas passa para o espectador a desconfortável sensação de perda de tempo depois de assistir. Não tem história e os efeitos são tão ruins que um grupo de estudantes adolescentes, igualmente sem dinheiro, consegue reproduzir provavelmente melhor. 
(Juvenatrix – 17/03/18)

A guerra de mundos, H. G. Wells

A guerra dos mundos (The war of the worlds), H. G. Wells. Ilustrações de Henrique Alvim Corrêa. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. Editora Companhia das Letras/Objetiva, selo Suma das Letras, São Paulo, 2016. (Edição original de 1898).

Em 2016 comemoram-se os 150 anos do nascimento do escritror britânico Herbert George Wells (1866-1946), mais conhecido com H. G. Wells, considerado o pai de ficção científica, autor de grandes clássicos do gênero, como A máquina do tempo (1895), O homem invisível (1897) e A ilha do Dr. Moreau (1896), entre muitos outros. Mas seu romance mais importante é, sem dúvida, A guerra dos mundos (The war of the worlds, 1898), que recebeu das editoras Companhia das Letras/Objetiva em seu selo Suma das Letras, uma edição comemorativa extremamente bem cuidada, com tradução de Thelma Médici Nóbrega.
O luxuoso tratamento gráfico e editorial, a começar da capa dura com laminação fosca, relevo seco e papel pólen nas 312 páginas do miolo, revela sua natureza realmente especial no conteúdo, que traz um prefácio assinado por Braulio Tavares (parte dele pode ser lido no Blog da Cia das Letras), com um levantamento histórico e bibliográfico do autor, repleto de informações pitorescas, bem como a longa e igualmente instigante introdução de autoria do também britânico Brain Aldiss, outra sumidade do gênero. Mas não fica nisso. O grande diferencial da edição são os cerca de 30 desenhos de Henrique Alvim Corrêa, artista brasileiro que produziu estas artes para a primeira edição belga do romance, publicada em 1906. A edição brasileira não mantém a mesma qualidade na definição das imagens originais (que podem ser apreciadas em diversos saites na internet, basta pesquisar) mas, mesmo assim, é um privilégio poder apreciá-las na forma similar a que foram apresentadas originalmente aos leitores.
A história é bastante conhecida. Depois de esgotarem os recursos naturais de seu planeta natal, a civilização marciana empreende uma migração em massa para a Terra, com objetivo de aqui se estabelecer. Dotada de grande avanço científico e tecnológico, os invasores facilmente dominam o planeta e iniciam a transformação do ambiente para seus próprios padrões, eliminando o incômodo humano no processo. A narrativa parte do ponto de vista de um cidadão comum, morador de Winchester, na Inglaterra, que, no ano de 1894, ao lado de outros moradores locais, testemunha a aterrissagem de uma das primeiras espaçonaves marcianas, a partir de onde todo o horror começa.
Não se trata de uma história convencional dentro do subgênero das invasões que ela mesma inaugurou. É uma narrativa de horror, repleta de descrições vívidas e muita desesperança. Wells não estava ali propondo apenas uma obra de ficção para entreter adolescentes. Na época em que escreveu, esse objetivo não existia no gênero*. Tinha sim um alvo maduro e evidente, que era a política colonialista que o império britânico imprimia ao mundo de seu tempo, algo similar ao que fazem hoje os impérios neocoloniais, impondo sua presença em territórios estrangeiros à força de poder bélico superior. Do mesmo modo que as populações invadidas de hoje reagem com ações que o ocidente convencionou chamar de "terrorismo", em A guerra dos mundos a humanidade tenta, com seus parcos e insignificantes recursos, resistir à presença alienígena, sem qualquer efeito. A invasão é completa e irresistível, e a humanidade parece viver seus últimos dias. O que vai decretar o desfecho da história é inesperado, algo sob o qual nem homens nem marcianos detêm qualquer controle. Mais uma vez, Wells estava coberto de razão.
A edição ainda traz, em suas páginas finais, uma entrevista com o autor e o cineasta Orson Welles – cuja adaptação da obra para o rádio 1938 causou pânico nos EUA. Welles certamente ajudou a construir a fama que A guerra dos mundos tem hoje, que depois recebeu adaptações para diversas mídias, e pelos menos duas grandes produções cinematográficas em Hollywood, uma de 1953 e outra de 2005, cada qual com uma leitura própria da obra vista a partir do território americano. Na verdade, A guerra dos mundos já assume o formato de um universo compartilhado, pois há dezenas de obras que dão versões em cores locais à invasão marciana de Wells, com fatos ocorridos em paralelo ou na seuência, como na ótima noveleta "A vitória dos minúsculos", em que o escritor brasileiro Roberto de Sousa Causo narra, em estilo machadiano, a chegada dos marcianos ao Rio de Janeiro, e na novela "Não estamos divertidos", na qual o escritor português João Manuel Barreiros conta uma missão de contra-ataque da Terra a colônia marciana na Lua, que sobreviveu ao holocausto.
Ou seja, ainda que seja um clássico obrigatório, nunca foi tão oportuno adquirir, ler e reler esta que é, sem dúvida, o que se pode chamar de uma edição definitiva para A guerra dos mundos.
Cesar Silva

* O conceito de literatura segmentada só viria a ser instalado na fc no período da normatização editorial das literaturas de gênero, promovida pelo editores pulp, nos anos 1930/1940, nos EUA, com objetivos unicamente comerciais.

sexta-feira, 16 de março de 2018

A grande fantasia chamada "Fantasia"

         Servido por uma equipe gigantesca e dividida no trabalho de oito segmentos de animação e nos trechos intermediários com pessoas de carne e osso, Walt Disney intentou, ao lançar Fantasia em 1940, uma nova – mais uma – revolução no cinema, através do seu gênio criador. Apesar de não ter agradado tanto como Branca de Neve e os sete anões, de 1937, o fato é que o tempo se encarregou de tornar Fantasia um filme cult inesquecível e que, hoje preservado em DVD, será visto enquanto existir cinema neste planeta.
            O que é, afinal, Fantasia? Trata-se, basicamente, de uma homenagem que Walt Disney prestou à música dos mestres, ele que era um autêntico melômano. E procurou mostrar que o cinema podia se aliar à música e que o desenho animado podia representar plasticamente os temas musicais. Para isso Disney convocou o superastro da música erudita, Leopold Stokowski, junto com a Orquestra Filarmônica de Filadélfia. A atuação de Stokowski, mesmo na penumbra, é majestosa; e ficou famosa a cena em que ele é cumprimentado pelo Mickey (cuja voz era do próprio Walt).
            O primeiro número apresentado é a “Tocata e fuga em ré menor” de Bach, chamado o “Pai da Música”. Trata-se aí de um exercício de cinema puro, linhas e cores acompanhando o ritmo musical.
“Suíte quebra-nozes” de Tchaikovski nos traz uma fábula com elementais, bichos e plantas. É delicada a cena dos cogumelos que viram dançarinos de aspecto chinês, ou então os peixinhos de longas caudas transparentes, numa linda superposição de imagens.
Todavia é deliciosa a história do “Aprendiz de feiticeiro” de Paul Dukas: Mickey Mouse faz o aprendiz do título, que se mete numa grande encrenca ao liberar forças que, depois, não saberá controlar. E tudo apenas para se livrar do trabalho de transportar baldes de água! Não falta uma paródia à megalomania, quando Mickey se vê, em sonho, controlando as próprias forças cósmicas.
Vale lembrar que aquela voz de falsete do Mickey era do Walt Disney, só após sua morte deve ter sido substituído.
A sequência seguinte me parece a mais elaborada: a “Sagração da Primavera” de Igor Stravinski. Trata-se da história do universo de da própria Terra, conforme o que a Cosmologia, Astronomia, Física, Paleontologia e a teoria da evolução dizem. Chega até a época dos dinossauros e sua misteriosa extinção.
A cena máxima, claro, é a luta entre o estegossauro e o tiranossauro Rex, que costuma ser tido como a maior fera da Pré-História.
Vem a seguir a “Sinfonia Pastoral” de Beethoven, e aí Disney aproveitou para contar uma vinheta mitológica e bucólica com Baco, Zeus,  faunos, centauros, cupidos e outros personagens.
A “Dança das Horas” de Ponchielli é muito engraçada e mostra avestruzes, jacarés, elefantes e hipopótamos dançando. Dá vontade de dizer: — Que ideia!
O sétimo e o oitavo números são a “Noite no Monte Calvo” de Mussorgski e a “Ave Maria” de Schubert. O oitavo completa o sétimo. Passamos da vertiginosa e caótica manifestação do Mal em estado puro (o próprio demônio) à pureza e serenidade de uma procissão cristã. O toque do sino da igreja interrompe a “noite de Walpurgis” e paralisa o mal. A mensagem é evidente.
Há muita gente que não gosta de Fantasia por fugir aos aspectos mais comuns dos filmes mas há que reconhecê-la uma obra-prima do cinema e comprovativa do gênio de Walt Disney, que congregou em torno de si a fina flor dos animadores norte-americanos. Como diretores das sequências aparecem Wilfred Jackson, James Algar, David Hand, Hamilton Luske, Ben Sharpsteen, Norman Ferguson e Samuel Armstrong. A produção é de Walt Disney, o catalisador da obra monumental, e a equipe é gigantesca, incluindo os animadores que constituíam de fato o melhor grupo de animação do cinema na época.
— Miguel Carqueija
Rio de Janeiro, 2 de fevereiro a 16 de março de 2018.

sábado, 10 de março de 2018

Stefan Wul, um Pulp Europeu

por Marcello Simão Branco

Na terra consagrada a autores clássicos como Rousseau, Dumas, Proust e Sartre, entre outros igualmente ilustres, houve espaço também para a ficção científica. Sim, o nome facilmente lembrado é o de Julio Verne, um mestre da antecipação. Mas quero me referir a um autor pouco celebrado, talvez mesmo entre os franceses. Estou falando de um sujeito que nasceu com o nome de Pierre Pairault, mas que se popularizou entre os fãs europeus de ficção científica como Stefan Wul.
A minha primeira experiência literária com Wul foi uma das mais curiosas e marcantes. Para começar, nunca tinha ouvido falar ou lido qualquer coisa a respeito dele. Era janeiro de 1989, estava em férias em Joinville com minha família. De forma surpreendente descobri um sebo na cidade e lá tinha dezenas de livros da Coleção Argonauta, de Portugal. Comprei alguns e na viagem de volta a São Paulo, de forma aleatória, escolhi um livrinho despretensioso com o nome de O Templo do Passado
Era um livro de Wul e o li de uma só sentada, durante as sete horas de viagem. Um enredo que abordava o destino de dois viajantes espaciais, que em visita a um planeta eram engolidos por um gigantesco monstro marinho, que era cultuado como um Deus por uma raça de lagartos inteligentes. Narrado em um ritmo ágil, com muita ação e suspense, além de imagens vívidas e coloridas, traz uma revelação em seu final, daquelas de “cair o queixo”, como se costuma dizer. 
Nascido em 27 de março de 1922 em Paris Stefan Wul morreu em 26 de novembro de 2003, aos 81 anos. Sua carreira literária foi curta e intensa: publicou 11 de seus 12 livros entre 1956 e 1959. Cirurgião dentista por profissão, Wul tinha uma imaginação poderosa, era um competente contador de histórias, no qual a aventura, as situações pulp e sense of wonders eram a tônica, rivalizando com o que de melhor fizeram os americanos nos anos 1930 e 1940 neste tipo de história.


Assim como o norte-americano Robert Silverberg, Wul também é um escritor que teve uma produção impressionantemente concentrada em alguns anos e depois parou de produzir por vários anos. Em dois momentos posteriores o autor retornou ao campo. Primeiro em 1977, ao publicar o romance Noo. E, justificando sua inserção bissexta, reaparece no cenário vinte anos depois, em 1997, com a republicação inteira de sua obra, provavelmente para recuperá-lo entre leitores de uma nova geração e como uma espécie de reconhecimento de sua obra, no contexto da ficção de gênero francesa (e mesmo européia) contemporânea. Para se ter uma idéia de como Wul está circunscrito no continente europeu, apenas um livro seu foi publicado em inglês, justamente o que eu li, Le Temple du Pase (como The Temple of the Past, em 1973). 
Wul é um resultado direto de uma renovação editorial surgida na França no início dos anos 1950. A coleção Antecipation, da editora Fleuve Noir, que foi responsável por uma das coleções mais longevas e importantes da ficção científica europeia. Com 2001 títulos de 1951 a 1997, publicou principalmente autores franceses, descobrindo vários novos talentos, como, entre outros, Pierre Barbet, Maurice Limat, Gerard Klein, Jimmy Guieu, F. Richard-Bessière, e um dos mais populares, Stefan Wul.
 Duas de suas obras foram adaptadas para desenho animado na França. Oms en Serie (O Mundo dos Draags, em português da Argonauta), como Fantastic Planet, de 1973, e L'Orphellin de Perdide (O Vagabundo das Estrelas em português), como Les Maîtres du Temps, em 1982, com desenhos de Moebius. 
Nós que lemos língua portuguesa, contudo e de forma surpreendente, somos privilegiados, pois nove dos seus 12 livros foram publicados em nossa língua, por meio da Coleção Argonauta – ou seja, uma coleção portuguesa, dentro da Europa. E, de certa forma faz sentido porque a Argonauta cumpriu em Portugal um papel semelhante à Antecipation, a não ser pelo fato de que jamais publicou um autor português, mas só estrangeiros.
Os livros publicados na Argonauta foram: Regresso a Zero (no.54), Pré-História do Futuro (56), O Vagabundo das Estrelas (60), O Mundo dos Draags (64), Missão em Sidar (72), Degelo em 2157 (76), O Templo do Passado (85), Armadilha em Zarkass (90) e O Império do Mutantes (107), que serviu de inspiração para o nome do grupo de rock brasileiro Os Mutantes, com Rita Lee, ao final dos anos 1960. Aliás, aqui no Brasil este livro também foi publicado, como A Cadeia das 7 – coleção Tecnoprint –, e outro foi Cativeiro Humano (O Mundo dos Draags, pela Argonauta) – coleção Tridente.


O crítico francês Lorris Murail, em Los Maîtres de la Science-Fiction (1993), tentou explicar as razões que fizeram-no interromper sua carreira quando já se tornara um escritor de entretenimento conhecido em sua pátria. Stefan Wul era um autor que escrevia motivado por uma espécie de “impulso irresistível” e não no sentido de construir intencionalmente uma carreira ou pertencer a um gênero ou a uma corrente determinada. Assim, quando as idéias cessaram após a dezena de pequenos romances que escreveu em fins dos anos 1950, ele se voltou para uma profissão “séria” e “segura”. 
Wul foi o típico autor popular esnobado por uma certa inteligentsia literária, que por ter qualidade, surpreende aos que o leem e acaba sendo adotado por esta mesma elite como um autor cultuado. Mas antes disso – e fundamentalmente –, ele é um autor pulp, com as virtudes e limites inerentes a esta autêntica forma de expressão literária: uma literatura de entretenimento, recheada de boas ideias. 
 Desta forma, se em suas rondas por sebos, você por acaso encontrar livrinhos com capas coloridas, títulos chamativos e de autoria de um certo Stefan Wul, deixe suas prevenções de lado e experimente. Primeiro porque, afinal de contas, o livro deverá ser baratinho. E depois e, mais importante, aposto que você irá gostar, ou no mínimo se surpreender com um tipo de narrativa muito imaginativa, mesmo dentro dos padrões da ficção científica.

Livros de Stefan Wul

Número
Título original (ano)
Em português (ano)
Editora/Coleção – País
1
Retour à “0” (1956)
Regresso a Zero (1959)/Regresso a “0” (1977)
Livros do Brasil/Argonauta 54/Clube do Livro/Nova Era – Portugal
2
Niourk (1957)
Pré-História do Futuro (1960)
Livros do Brasil/Argonauta 56 – Portugal
3
Le Temple du Passé (1957)
O Templo do Passado (1964)
Livros do Brasil/Argonauta 85 – Portugal
4
Oms em Série (1957)
O Mundo dos Draags (1961)/Cativeiro Humano (1970)
Livros do Brasil/Argonauta 64 – Portugal/Tridente Edições e Artes Gráficas/Ficção Científica 5 – Brasil
5
Rayons Pour Sidar (1957)
Missão em Sidar (1963)
Livros do Brasil/Argonauta 72 – Portugal
6
La Peur Géante (1957)
Degelo em 2157 (1963)
Livros do Brasil/Argonauta 76 – Portugal
7
L’Orphellin de Perdide (1958)
O Vagabundo das Estrelas (1960)
Livros do Brasil/Argonauta 60 – Portugal
8
La Mort Vivant (1958)
O Império dos Mutantes (1966)/A Cadeia das 7 (?)
Livros do Brasil/Argonauta 107 – Portugal/Editora Tecnoprint/Futurâmica 4 – Brasil
9
Piège sur Zarkass (1958)
Armadilha em Zarkass (1964)
Livros do Brasil/Argonauta 90 – Portugal
10
Terminus (1959)
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11
Odyssée sous Contrôle (1959)
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12
Noô (1977)
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