sexta-feira, 3 de maio de 2024

Asas na Noite

 




Asas na Noite (Nightwings), de Robert Silverberg. Tradução: Eduardo Saló. 200 páginas. Rio Maior Alfragide (Portugal): Editorial Panorama, Coleção Antecipação, n. 44, sem data – provavelmente início dos anos 1970. Lançado originalmente em 1969.

 

Esta é uma das histórias mais belas já escritas em toda a ficção científica. Num futuro de dezenas de milhares de anos, a Terra vive um período de decadência civilizatória e dominada por uma espécie alienígena. Após um longo e atribulado período de desenvolvimento viveu um apogeu material e interestelar para, por causa em parte dele, sofrer um colapso e decair em termos civilizatórios, a ponto de ser dominada por uma espécie alienígena. Como se verá é uma história sobre expiação e redenção, mas não só dos personagens, como de toda a humanidade, como se ela mesma fosse em si uma personagem.

Este sumário sugere uma história futura interessante, mas talvez nem tão diferente de outras de perfil semelhante. Pois o que a torna realmente singular é o desenvolvimento colorido e inspirado criado por Robert Silverberg, principalmente na atmosfera de exotismo que beira a fantasia e o maravilhoso, com cenários, situações e personagens únicos e inesquecíveis.

Publicada na revista Galaxy, sob edição de Frederik Pohl (1919-2013), em setembro de   1968, situa-se no contexto da melhor fase da carreira de Silverberg, no qual ele havia se reinventado, após publicar muitos contos de aventuras espaciais sem mérito maior na década anterior, salvo uma ou outra exceção. Assim, Asas na Noite – premiada com o Hugo 1969 e finalista do Nebula 1968 –, surge em meio a outras obras notáveis como, por exemplo, os romances Espinhos (Thorns; 1967), O Correio do Tempo (Up the Line; 1969) e Downward to the Earth (1969), além de histórias curtas notáveis, como "Moscas" (Flies; 1965), "Passageiros" (Passengers; 1967) e "A Dança do Sol" (Sundance; 1968).

Asas na Noite, nesta versão publicada em Portugal, se constitui no romance fix-up que reúne as três novelas situadas neste universo ficcional. A primeira é, justamente, “Asas da Noite” excepcional coletânea de Silverberg, publicada também no Brasil na coletânea Mutantes: Os Melhores Contos de Ficção Científica (Melhoramentos, 1991) – note que o título da novela é Asas da Noite e não na, e penso que o título nacional é o mais correto. As outras duas, que compõe o livro ora resenhado é “Entre os Recordadores” (1968) e “A Caminho de Jorslem” (1969) – finalista do Nebula 1969 e do Hugo 1970.

Em Asas na Noite, como dito, a civilização vive num futuro distante em decadência ao apogeu de outrora, quando, ao explorar as estrelas impôs uma política de expansão e imperialismo a outras formas de vida pelo universo e, internamente, ao tentar controlar a meteorologia do planeta, provocou uma catástrofe climática que viu submergir os antigos continentes da Usamérica e da Sudamérica, conhecidos em tempos distantes como América do Norte e do Sul.

A humanidade se reorganizou precariamente e dividiu-se em várias corporações específicas como a dos Observadores, Defensores, Recordadores, Voadores, Peregrinos, Dominadores, Servidores, Músicos, Voadores, Cirurgiões, Mercadores, e muitas outras. Regidas por regras próprias e rigorosas, segregam-se umas às outras em direitos exclusivos a cada uma delas, e convivem com os sem corporações, totalmente marginalizados, como os mendigos e os enjeitados – estes descendentes de experiências genéticas malsucedidas e que vivem sem função nesta ordem social. No fundo, um tipo de estratificação social semelhante à da Idade Média, pois também aqui há uma influência mútua entre poderes políticos e religiosos.

E é neste contexto que acompanhamos a trajetória de vida de um observador, que tem de perscrutar com seus instrumentos o céu para avisar sobre uma invasão alienígena prometida há muito tempo e, considerada quase como um mito. Isso ajuda a entender porque ele e os demais observadores têm pouco prestígio, sendo encarados quase com desdém. Ele nos conta sua história em primeira pessoa em sua jornada para a metrópole de Roum – sim a antiga Roma, pois é natural que milhares de anos depois os nomes tenham sofrido alguma mudança, como já havia citado com relação ao extinto continente americano.

O observador – que não pode revelar o seu nome e nem se casar – tem a companhia de Avluela, uma bela jovem da corporação dos Voadores. Modificados geneticamente, estas pessoas têm asas, mas só podem voar durante a noite, daí a alusão ao título da novela e do próprio romance. Sua beleza e ingenuidade desperta sentimentos paternais no velho observador e sexuais no enjeitado Gormon, que também os acompanha.

Contudo, após chegarem a seu destino, as coisas se precipitam, pois, o Príncipe de Roum, toma Avluela como sua consorte, o enjeitado revela uma outra identidade, e a profecia se realiza: o observador avista a chegada dos invasores que, com grande poder militar, rende rapidamente não só a grande metrópole, mas sabe-se depois, a própria Terra.

Asas na Noite termina numa espécie de clímax e deixa no ar o que poderia acontecer com a chegada dos invasores. Este desfecho em aberto e o sucesso da história fizeram com que Silverberg fosse incentivado a escrever mais sobre este universo. Para sorte de todos nós, embora todos os elementos centrais estejam presentes nesta novela brilhante.




Portanto, a aventura continua com “Entre os Recordadores”, primeiro vista na Galaxy de novembro de 1968. Após a queda de Roum, o ex-observador parte para Perris – Paris – tendo como companheiro um peregrino cego, mas que, na verdade é o Príncipe de Roum, que escapou à tomada da cidade, mas foi ferido por Gormon, em vingança por ter ficado com Avluela. Chegando a Perris, o ex-observador procura a ordem dos Recordadores, pois já que não pode mais vislumbrar o futuro, quer se voltar ao passado. Ambos se envolvem com um casal da ordem – Elore e a sedutora Olmayne – com consequências decisivas para seus destinos.

Nesta história, Silverberg explica melhor o contexto histórico e social do universo ficcional, em especial cada um dos três ciclos. Assim, no primeiro, a humanidade se desenvolveu dos seus primórdios até chegar ao espaço – num paralelo, talvez com o ciclo que estejamos deixando em nossa realidade; no segundo, a Terra chega ao seu apogeu econômico e tecnológico, não só travando contato com outras civilizações extraterrestres, mas dominando de forma imperialista várias delas. A Terra se torna o centro político das espécies inteligentes, mas provoca mais ressentimentos do que admiração. O que, em parte, explica sua queda no terceiro ciclo, embora as razões tenham sido principalmente internas. Através de uma tentativa tão ambiciosa quanto quixotesca de controlar a atmosfera do planeta, ocorre um cataclismo ambiental, com terremotos, maremotos e erupções vulcânicas, que faz com que a Usamerica e a Sudamerica – correspondentes ao continente americano – submerjam! E é neste terceiro ciclo que a história se passa, e agora dominada por uma raça alienígena do planeta H362, que outrora foi humilhada ao ter alguns de seus seres expostos num zoológico espacial situado na Terra, e prometeu vingança, daí a invasão.

O episódio final é “A Caminho de Jorslem”, publicada também na revista Galaxy, em fevereiro de 1969 – indicada ao Hugo de 1969 e ao Nebula de 1970. Após se tornar o recordador Tomis, o observador original se torna um peregrino e busca se redimir de seus pecados e falhas – sobretudo por ter contribuído para a causa dos invasores, ao tentar livrar da morte o Príncipe de Roum. Numa longa jornada muito atribulada, ao lado de Olmayne, ele chega finalmente à cidade santa de Jorslem – Jerusalém –, onde finalmente terá o desenlace de sua trajetória e a esperada redenção e o amor. Isso porque ele reencontra Avluela, e ao passar por uma cerimônia religiosa e se submeter como parte dela a um procedimento cirúrgico, recupera sua juventude. É aceito na nova ordem dos Redentores e, ao lado, de Avluela, dá um novo sentido à sua vida.

No fundo, Asas na Noite – o romance – elabora com rara beleza e sensibilidade talvez o tema mais abordado por Silverberg em sua carreira: o da redenção. Esta busca pela volta por cima, pela expiação e, aqui no caso, literalmente, numa transformação física e espiritual, é recorrente, em sua obra. Exemplos como no conto “Moscas” (1965) e os romances Espinho (Thorns; 1967), Labirinto (The Man in the Maze; 1969), do inédito em língua portuguesa Downward to the Earth (1970) e de Uma Pequena Morte (Dying Inside; 1972), entre outros. Mas o diferencial de Asas na Noite é que a redenção tem um sentido e objetivo coletivo, e no caso, de fundo místico ou religioso, talvez inspirado no contexto contestatório e libertário dos anos 1960 e que funciona muito bem na história. Uma conclusão emocionante para uma das mais belas histórias de ficção científica já escritas.

Marcello Simão Branco

 ***



No contexto da publicação da resenha acima, está sendo lançado o livro – em formato e-book – Os Mundos Abertos de Robert Silverberg, de Marcello Simão Branco, nova edição revista, ampliada e atualizada da primeira edição lançada em 2004.

Publicado agora pela editora Mojunganide, em seu selo Yadhe, conta, ainda, com uma diagramação caprichada, além de capa e belíssimas ilustrações internas de Daniel Abrahão, inspiradas em histórias de Silverberg.

Mais detalhes de Os Mundos Abertos de Robert Silverberg pode ser conferido aqui: 

https://mensagensdohiperespaco.blogspot.com/2024/05/lancamento-os-mundos-abertos-de-robert.html



sexta-feira, 26 de abril de 2024

A mão que pune: 1890, Octávio Aragão

A mão que pune: 1890
, Octávio Aragão. 212 páginas. Rio de Janeiro: CJD, selo Caligari, 2018.

Depois de um prolongado hiato (seu último livro, Reis de todos os mundos possíveis, foi publicado em 2013 pela Draco), o professor e escritor carioca Octavio Aragão, que muitos conhecem como o pai da franquia Intempol, retornou em 2018 com o romance A mão que pune: 1890, pela Caligari, selo da Editora CJT, do Rio de Janeiro. Trata-se de uma aventura de ficção científica de contorno steampunk, pulpesca e movimentada, no mesmo ambiente de seu primeiro romance A mão que cria (Mercuryo, 2006), com uma profusão de personagens da ficção contracenando com personalidades históricas, num resultando que fica entre a ficção alternativa e história alternativa. 
A história de A mão que pune: 1890 ocorre numa realidade histórica já bastante alterada pelos eventos do volume anterior. A França, ambiente dos primeiros movimentos da narrativa, é uma república presidencialista que tem o escritor Julio Verne como chefe de Estado. A confiança de Verne na ciência e suas ideias tecnologicamente inovadoras tornaram o pais uma potência do século XIX, na qual cientistas pesquisam todo tipo de bizarrices. Experiências com seres humanos, por exemplo, são muito frequentes e os resultados deles trarão muitos problemas para o protagonista, o jornalista Angelo Agostini, cartunista ítalo brasileiro que inicia a história em Paris, desolado com a morte recente da amante e um filho bebê para cuidar. Ao visitar a Feira Mundial de Paris, em 1890, Agostini reconhece D. Pedro II, imperador do Brasil, que está em Paris em segredo para tentar obter a cura para uma doença misteriosa que está matando seu filho. Mas a França está a beira de uma guerra promovida por um grupo extremista que pretende fazer uso dos mortos-vivos de Dr. Frankenstein como principal força de ataque contra os híbridos entre homens e animais advindos das pesquisas de um certo Dr. Moreau, que formam a guarda pretoriana do regime verniano. A essa problemática já bastante complicada, acrescente-se o sequestro do filho de Agostini e uma batalha de dirigíveis nos céus do Brasil, regada a generosas doses de violência e pirotecnia, e temos como resultado final uma história extremamente movimentada e muito difícil de compreender. 
A estrutura narrativa barroca é uma das assinaturas estilísticas de Aragão, que geralmente começa suas histórias em ritmo leve e convencional, mas acelera constantemente de forma que, a certa altura, a narrativa fica tão frenética que é como tentar acompanhar um filme projetado em alta velocidade. Além disso, a grande quantidade de personagens similares – todos são maus e violentos – torna a identificação de quem matou quem num complexo quebra cabeças no qual as peças não se encaixam muito bem. Fica a amarga sensação de que perdemos alguma coisa pelo caminho, justamente aquilo que seria a chave para o entendimento pleno da história. 
Mas, na verdade, não há nem nunca houve chave alguma. Aragão é um autor que trabalha mais no nível das sensações do que da racionalidade, ou seja, suas histórias são para serem sentidas, não compreendidas. A tecitura narrativa não-linear soa algo desordenada, como uma história contada através de fragmentos aleatórios extremamente intensos. É como se o leitor fosse um soldado no front de uma batalha, tão absorvido pela necessidade de manter-se vivo em meio a barafunda que não consegue ter uma visão geral do que está acontecendo. Por ver a coisa de muito perto, perde toda a perspectiva.
É praticamente impossível ser mais preciso quanto aos contornos da história deste romance. Isso pode ser uma vantagem, pois também é praticamente impossível dar spoillers. Mas é certamente uma peça impressionante, tanto que conveceu os conservadores membros do Clube dos Leitores de Ficção Científica a dar-lhe o prêmio Argos de melhor romance de 2018 (o Prêmio Argos é votado apenas pelos associados do referido Clube e escolhe, anualmente , os melhores textos originais longo e curto da ficção fantástica brasileira). 
Christopher Kastensmidt, escritor texano radicado no Brasil e autor dos contos da série A Bandeira do Elefante e da Arara, assina um prefácio que entra na brincadeira de Aragão, antecipando o nonsense que se multiplicará nas páginas seguintes. 
Por isso tudo, não há necessidade de ler A mão que cria para fruir A mão que pune. Se você ficar com a impressão que perdeu algo, relaxe. A ideia é essa mesmo.
Cesar Silva

sexta-feira, 19 de abril de 2024

BESTA DE GÉVAUDAN


BESTA DE GÉVAUDAN

Miguel Carqueija

 

Não saia de casa à noite,

aguarde até de manhã;

que ela vem como um açoite:

a Besta de Gévaudan!

 

Quem tem um uivo medonho

e matar é o seu afã,

quem mais parece um mau sonho?

É a Besta de Gévaudan!

 

Ela é a fera noturna

que ataca para matar:

e pela noite soturna

está sempre a vaguear!

 

Nada consegue por medo

na perversa criatura,

que carrega o seu segredo

desde o monte até a planura!

 

 

Ó Deus, protege este povo!

Como será o amanhã?

Sempre mais mortes, de novo,

na vila de Gévaudan?

 

A Besta quer muito sangue

e não receia morrer:

deixa sua vítima exangue,

ela mata por prazer!

 

Que mal que fez esta terra

pra tamanho merecer?

E sustentar esta guerra

Com tão poderoso ser?

 

Cavaleiros e cachorros

o monstro já perseguiram

pelas charnecas e morros

porém nada conseguiram!

 

Precisamos de um herói

ou então de um grande santo

porque esta matança dói

e a Morte estende o seu manto!

 

É grande a dor no horizonte

e reina a fatalidade;

de onde será a fonte

que gerou essa maldade?

 

As patas pisam silentes

como forradas por lã;

punindo os impenitentes:

a Besta de Gévaudan!

 

Olhos de sangue injetados

cheios de ódio a nós espiam

enquanto os mortos, coitados,

pelas estradas jaziam!

 

É um lobo, uma hiena,

ou um dragão repulsivo

que nos mata sem ter pena?

Será dos céus um aviso

 

do que virá sobre a França

e que fará perecer

homem, mulher e criança

e será ver para crer?


Este é o flagelo de Deus,

a Besta é um vaticínio:

protejam os filhos seus

que aí vem o morticínio!

 

E o bispo na procissão

suplica o auxílio dos santos:

livrai-nos da maldição,

enxugai os nossos prantos!

 

Rio de Janeiro, 6 de abril de 2024

 

 

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quarta-feira, 3 de abril de 2024

A Caixa Verde

 




A Caixa Verde (Claimed), Gertrude Barrows Bennett. Tradução: Gustavo Terranova Aversa. Capa: Natália Mieko Okamoto Aversa. 247 páginas. São Paulo: Andarilho, 2023. Lançamento original de 1920.

 

Uma tendência dos últimos anos no ambiente editorial voltado à FC&F no Brasil tem sido a publicação de autores estrangeiros em domínio público. Isso se tornou mais presente por causa da entrada de vários desses autores nessa condição. Com isso, além de nomes consagrados como, por exemplo, H. G. Wells e Lovecraft, outros menos conhecidos ou inéditos no país ganharam suas edições.

Este é o caso desta autora, Gertrude Barrows Bennet (1883-1948), apesar de A Caixa Verde não ser sua primeira obra a ser lançada no Brasil. Antes, dentro deste contexto recente, ela já teve publicados As Cabeças de Cerbero (The Head of Cerberus; 1919) e A Cidadela do Medo (The Citadel of Fear; 1918), pela editora Melusine, no sistema de financiamento coletivo Catarse.

A Caixa Verde começa com a descoberta de uma ilha alçada à superfície do mar depois de uma poderosa tempestade que quase tragou um navio na região das ilhas portuguesas dos Açores, no Atlântico Norte. Parte da tripulação vai ao pedaço de terra e se depara com um conjunto de altas colinas rodeadas por estranhas formações que parecem ruínas de uma cidade desaparecida. Um dos marujos traz um pedaço tirado de uma pedra e, ao mexer nela com mais cuidado no barco, vê surgir uma estranha e hipnótica estrutura retangular de cor esverdeada. James Blair, contudo, passa a ter pesadelos e visões perturbadoras, e vende a caixa numa loja de antiguidades. Mas esse objeto irá amaldiçoar toda a pessoa que tem contato com ela. Como é o caso de Jesse Robinson, um empresário de personalidade autoritária que vive com sua linda sobrinha, Leilah Robinson. Após contato com a caixa, ele passa mal, recebe a visita de um jovem médico, o doutor Vanaman, e a partir daí os três estarão definitivamente envolvidos pelo poder maléfico e sobrenatural da caixa, que, além disso, desperta curiosidade pela inscrição misteriosa numa de suas bases e por não ter uma abertura visível para se conhecer o que pode, eventualmente, ter em seu interior.

A autora escreve muito bem, tem uma linguagem fluente, sem firulas, e as imagens que cria a partir dos poderes da caixa impressionam pela imaginação de tons verdadeiramente fantásticos. Além disso, seus personagens são pouco mais densos do que o habitual nas revistas pulps, onde, a história foi primeiro publicada de forma seriada, na revista Argosy. Apesar disso, talvez fosse comum para a época, temos o manjado triunvirato: o ancião poderoso, sua linda protegida e um jovem cientista que, ao prestar serviços ao homem, se apaixona pela garota. Tal estrutura foi repetida à exaustão na literatura pulp, quadrinhos, séries de TV e cinema, século XX adentro. Mas não chega a incomodar nesta história, pois, como dito, ela é bem dinâmica e está centrada no mistério da caixa e seus efeitos perturbadores nas pessoas.

Tal como uma história circular, o desenlace se dá no mar: Robinson e sua sobrinha são raptados por um barco sobrenatural e Vanaman, claro, vai no encalço para resgatar, principalmente, Leilah. Mas, mais importante: o que seria exatamente esta caixa verde, e porque exercia esses poderes, e de quem, afinal ela era? As respostas são parcialmente oferecidas no contexto de uma civilização perdida que teria existido em tempos imemoriais entre a América do Norte e a Europa, sim, o continente mítico da Atlântida. Ao possuir a caixa e procurar desvendar seus poderes, Jesse Robinson desencadeou a fúria de uma antiga entidade atlante que, renascida, passou a reivindicar a devolução do objeto.

Quase tão interessante quanto a história, é a figura da autora, que foi descoberta, por assim dizer, em 1952, quatro anos após sua morte, quando do lançamento em livro do pequeno romance The Citadel of Fear, onde o pesquisador Loyd Arthur Eshbach (1910-2003) apresentou provas sobre sua identidade. Isso porque, em vida ela publicou com o pseudônimo de Francis Stevens, entre os anos de 1917 e 1923, quando escreveu doze histórias publicadas em revistas, como a já citada Argosy e em Weird Tales. Por receio de não ser bem recebida, ela sugeriu ao editor que a publicasse com um nome fictício, vindo daí o nome que ficou associado a um homem. Pelo fato de ter tido uma carreira muito curta, até a descoberta de sua verdadeira identidade muitos imaginaram, inclusive, que Francis Stevens fosse pseudônimo do autor e editor prestigiado da época, A. Merritt (1884-1943).

Portanto, sendo uma mulher, ela foi uma precursora nos gêneros FC&F nos Estados Unidos, especialmente na primeira metade do século XX, num ambiente extremamente masculino e machista. Para além de seu pioneirismo de gênero, Bennett é um nome importante pela qualidade de sua obra, uma instigante mistura entre ficção científica, fantasia e horror, bem ao feitio da corrente weird que tomou as páginas de muitas das pulp magazines nas décadas de 1920 e 1930. O influente crítico Sam Moskowitz (1920-1997) chegou a afirmar que ela foi “a maior escritora de FC no período entre Mary Shelley e C.L. Moore” – citado no livro Partners in Wonder: Women and the Birth of Science Fiction, 1926-1965, de Eric Leif Davin, publicado em 2005.

Por tudo isso, esse lançamento da pequena editora Andarilho – que inclui como brinde, um mapa da Atlântida! – na sua simpática coleção de livros de FC&F de autores em domínio público, merece mais atenção: seja pelo prazer de uma aventura enigmática e inteligente, seja por aqueles que pesquisam sobre a história da FC&F.

Marcello Simão Branco


sábado, 23 de março de 2024

O estranho oeste de Kane Blackmoon, Duda Falcão

O estranho Oeste de Kane Blackmoon
, Duda Falcão, 184 páginas. Porto Alegre: Avec, 2019.

Uma das primeiras manifestações editorialmente articuladas da literatura de gênero foi a Weird Fiction, que levou esse nome por estar associada à revista "pulp" Weird Tales, que circulou entre 1923 e 1954 nos Estados Unidos da América. Weird Tales era basicamente uma revista de contos de horror, mas como naqueles tempos pioneiros ainda não havia protocolos claros que estabelececem as características de cada um dos gêneros, os autores da revista costumavam misturá-los em receitas muito variadas, de modo que é quase impossível classificá-las em um gênero específico. São, portanto, Weird Fiction. Autores como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith são representantes destacados desse período. E como não havia limite algum, não raro os autores acrescentavam doses generosas de dramas épicos, e um dos período mais recorrentes era faroeste que, mais tarde, tornou-se também um gênero em si.
Para um autor americano do início do século XX, colocar histórias estranhas num ambiente de faroeste não era uma coisa incomum, afinal, em muitos lugares dos EUA, os cenários contuavam sendo os mesmos do século anterior. Contudo, esse tipo de narrativa acabou por ganhar corpo próprio, de forma a se tornar ele mesmo um gênero, que é hoje conhecido como Weird West. 
Pode parecer estranho um autor brasileiro se interessar por esse gênero tão estravagante e distante da cultura local, até porque temos ambientes similares ainda pouco explorados, como o visto na novela de horror O fascínio, de Tabajara Ruas, e o filme longa metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mas visto de dentro do fandom, é natural que um autor fã apaixonado pela Weird Fiction sinta o impulso de fazer algo nessa linha. Tanto que já tivemos, em anos recentes, as antologias Cursed City (2011, Estronho), Sagas Volume 2:  Estranho Oeste (2012, Argonautas) e os romances Areia nos dentes, de Antonio Xerxenesky (2008, Não) e O peregrino: Em busca das crianças perdidas (2011, Draco), de Tibor Moricz.
Este é também o caso de Duda Falcão, escritor gaúcho que há anos vem desenvolvendo uma robusta carreira como autor de horror sobrenatural. Sua especialidade são as narrativas curtas, que já reuniu em quatro volumes: Protetores (2012, Underworld)), Mausoléu (2013, Argonautas), Treze (2015, Avec) e Comboio de espectros (2017, Avec). Seu trabalho mais recente é justamente um fix-up (romance construído a partir de contos independentes de um mesmo contexto) de Weird West com o pitoresco título O estranho Oeste de Kane Blackmoon, publicado em 2019 pela Avec, editora que nos últimos anos tem executado um trabalho muito consistente no ambiente da ficção fantástica.
O estranho oeste de Kane Blackmoon conta a história de um mestiço de branco e índio que sustenta sua vida como caçador de recompensas. Numa de suas caçadas, Blackmoon conhece Sunset Bison, xamã lakota (sioux, para os inimigos) que pede sua ajuda na missão sagrada de recapturar um demônio e o inicia nos mistérios do xamanismo. Mas, na luta contra o ente sobrenatural que ocupava o corpo de um pistoleiro cruel, o xamã acaba por ser ferido de morte. Nos seus últimos momentos, Sunset Bison passa para Blackmoon a tarefa de encontrar e prender o demônio. Para isso, ele terá de desenvolver suas capacidades místicas ainda incipientes, pois o demônio não é nem de longe o único ente do mal que se arrasta pelos desertos e pradarias do oeste selvagem. 
O romance é composto de oito contos dispostos linearmente na ordem dos acontecimentos: "Homem-urso", Bisão do Sol Poente", "Armadilha", Resgate do mundo inferior", "Procurado", Sob os auspícios do Corvo", "Nevasca", "O trem do inferno". Não há pretenção de situar as histórias de Kane Blackmoon num contexto histórico realista, como acontece, por exemplo, na série italiana de quadrinhos Mágico Vento, na qual circulam personalidades famosas em ambientes e fatos historicamente reconhecíveis, que dão à narrativa um caráter elegante e sofisticado. Neste aspecto, o romance de Falcão tem uma pegada mais similar ao primeiro volume da série A Torre Negra, de Stephen King: o estranho Oeste de Blackmoon é uma ambiente mítico, totalmente descolado do real, no qual anacronismos não são relevantes e podem até ser elementos dramáticos que fazem parte das histórias. 
A leitura do romance é agradável, muito por conta do talento de Falcão em contar histórias. Percebe-se a preocupação do autor em criar um texto que possa ser prazeroso e compreensível para leitores de todas as idades. Não há cenas grotescas e sanguinolentas em exagero, e a violência intrínseca ao gênero tem a estética das histórias em quadrinhos. O resultado é mais para uma aventura de dark fantasy do que de horror gore, embora tenha potencial para isso. Ainda traz, em camadas mais profundas, a questão do preconceito, uma vez que o personagem é um pária tanto entre os brancos quanto entre os indígenas, mas esse tema não foi explorado em profundidade. 
Kane Blackmoon acaba por se tornar um dos personagens de referência da literatura nacional de horror e teve ótima repercussão quando do lançamento do livro, em 2019. Ainda que o romance tenha um desfecho bastante satisfatório, acredito ser possível dar sequência às suas histórias, pois o mal do mundo é inesgotável. Mas isso é lá com Duda Falcão.
— Cesar Silva

sábado, 2 de março de 2024

Portal de Capricórnio




 Portal de Capricórnio, Ursulla Mackenzie. Capa: Denise Didelet. 219 páginas. São Paulo: Uiclap, 2019. Lançamento original em 2012.

 

Este livro me chegou em mãos através da própria autora, uma conhecida de anos do fandom brasileiro de FC&F. O leitor mais desavisado pode estar a estranhar o nome, mas se trata, na verdade, do nome artístico utilizado nos últimos anos por Márcia Olivieri. Inclusive, a edição original desta obra saiu com seu próprio nome.

É sua obra de maior fôlego até o momento, um romance muito movimentado sobre a descoberta de uma jovem, Dru River, de um livro antigo que traz consigo, além de segredos sobre as origens da humanidade, o acesso a um passado longínquo. Mas antes disso, ela, fascinada com o livro achado numa casa aparentemente abandonada no litoral paulista, justamente no meridiano do Trópico de Capricórnio, reúne, através de um amigo, vários pesquisadores para estudarem a obra. É então que Dru River, ao levá-los até o local onde o livro foi encontrado, é transportada subitamente junto com eles para um outro local, muito distante e totalmente diferente de tudo o que já conheciam e viveram. Confusos e transtornados, eles têm de entender onde estão, como foram parar lá, que relação há com o livro e, mais importante, como voltar para suas realidades.

Estas e outras perguntas irão movimentar os objetivos e ansiedades dos personagens que, aos poucos, e devido aos perigos repentinos que enfrentam, lutarão principalmente por sua sobrevivência num local que, pelo que vão percebendo, não faz parte do mundo que eles conhecem. Ambientes radicalmente diferentes se sucedem: ora um deserto branco e traiçoeiro, ora uma floresta densa e cheia de surpresas, ora planícies abertas, mas não menos perigosas. A temperatura também muda de forma abrupta, mas o mais terrível são as criaturas com que se deparam: seres rastejantes, ciclopes, monstros marinhos, tal como um kraken, seres centauróides, duendes e pássaros gigantescos semelhantes a seu ancestral pterosauro etc.

Mas que lugar é este e como foram para lá? Dru River e seus amigos transpassaram um portal do tempo, indo parar há 22 mil anos no passado da Terra. Mas podemos dizer que este passado do nosso planeta está muito mais próximo de um mundo de conto de fadas do que algo próximo do que seria verossímil por tudo que se conhece em termos científicos. Isso porque o romance, embora use o recurso da viagem no tempo, o faz apenas como meio de exploração de um lugar fantástico e mágico, mais próximo da mitologia do que da arqueologia.

Neste mundo, talvez de um universo paralelo, embora isso não seja explicitado, poderes mágicos e aparentemente sem explicação são possíveis, além do fato da própria presença de seres só conhecidos das lendas e fábulas – nesse sentido, senti a falta de um dragão. Daria um toque a mais de excentricidade ao conjunto de seres reunidos neste passado muito estranho.

Além de tentar sobreviverem, o grupo descobre porque, afinal, havia parado por lá. Um certo sujeito chamado Hans, representante de um Governo da Coalizão Mundial, lidera um plano secreto de colonizar este passado remoto. Mas resolveu usar dos serviços de Dru River e seu pessoal, por assim dizer, para que estes pudessem descobrir os segredos da principal civilização do tempo remoto, os Kathumaran que, por meio da magia e saberes ocultos, conseguem se manter protegidas e pode representar uma ameaça para os objetivos imperialistas.

Após conhecer Bram, o explorador dos Kathumaran e sua civilização, o grupo tenta voltar à nossa época, mas é surpreendido por Hans e seus soldados, que condicionam o retorno e sobrevivência, à revelação dos segredos da civilização. Eles voltam, mas resolvem adentrar o portal novamente para encontrar parte do grupo que havia se separado, além de tentar impedir os objetivos sinistros de Ham. Esta é uma espécie de ponto de virada da obra, pois ao retornar muitas das novidades são apenas repetidas, o que, de certa forma, diminuiu o impacto da obra até o seu final.

Mesmo assim, o leitor percebe que a história é cheia de reviravoltas. Se beneficia da tradição da fantasia do conto de fadas, com seus lugares fantásticos, personagens poderosos, magias e monstros, e em diálogo com os mundos imaginários criados por Burroughs e Tolkien. O perfil é voltado ao público infanto-juvenil, mas pode agradar a pessoas de qualquer idade, pois o forte é o entretenimento. A autora é competente nesse quesito que acaba, inclusive, reduzindo o impacto de possíveis senões presentes no enredo e seus desdobramentos, que poderiam se mais trabalhados e trazidos de forma mais importante à trama. Como, por exemplo, os detalhes desta coalizão mundial, como se formou, e descobriu o portal, e, talvez também, menos maniqueísta em seus objetivos. Ou então, a exposição do próprio passado, que fica apenas mostrado por meio das impressões dos viajantes, e não em si mesmo. Do jeito que está, parece mais, de fato, pertencente a um universo paralelo ou alternativo, mas poderia ter sido um pouco mais elaborado.

Há também alguns excessos de estilo, como o uso em demasia de pontos de exclamação na fala dos personagens. Um trabalho de edição poderia melhorar este aspecto, tornando a prosa com menos ruídos de interjeições. Como a primeira edição foi publicada em 2012, e esta teve relançamento em 2019, é possível que a autora tenha feito alguma revisão da obra, embora as duas edições, salvo engano, tenham o mesmo número de páginas. Mais importante, ela informa que escreveu uma segunda parte, onde responde às pontas soltas deixadas, e finaliza a aventura.

A paulistana Márcia Olivieri, já uma veterana da Terceira Onda da FCB, tem publicado contos em antologias de prestígio como, por exemplo, Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005) e Fractais Tropicais (2018), além de também já ter aparecido no exterior, em países como Alemanha, Argentina, Espanha e Estados Unidos. Inclusive, tem em vista um novo romance, que deve ser publicado em breve. Tudo isso só comprova que estamos diante de uma autora de carreira contínua e séria, que tem procurado se aprimorar e dar novos rumos à difícil e incerta carreira de escritora. Ainda mais de FC e fantasia. Talvez por isso tenha adotado um pseudônimo estrangeiro? É possível, pois vários outros brasileiros já tentaram esta estratégia para auferir mais êxito.

Seja como for, Portal de Capricórnio é um romance de fantasia, mas com ênfase weird interessante, que poderia, inclusive, ser adotado como livro didático em escolas, pois além de um bom entretenimento, inclui também um leque de informações corretas, em termos de dados históricos e/ou mitológicos, que poderiam ser úteis em atividades para crianças e adolescentes.

Marcello Simão Branco